Valores do mercado do concelho continuam a subir, influenciados por fatores do pós-pandemia e aumento da procura. Profissionais do setor dizem que não se prevê abrandamento do mercado, enquanto populações se queixam de “aumento brutal”.
Ao chegar àquele apartamento, no número 14 da Avenida 25 de Abril, em Cacilhas, Paula Sousa não quis furar as paredes. “Uma pessoa sabe que não é dona da casa, tem que ter algum cuidado”. Acabou por fazê-lo passados vários meses, depois de conquistar a confiança da anterior proprietária do edifício. Começou então a pendurar os retratos da família, como o da sua mãe, que tem lugar de destaque na sala.“Disse-me: ‘Paula, a casa é tua’. E eu furei”.
Mas não era. Esta segunda-feira, dia 31 de março, foi o último dia de Paula Sousa no apartamento, que dividia com uma colega de casa. Foi obrigada a sair, como muitos almadenses para quem nos últimos anos, com o aumento das rendas e subida dos preços do mercado da habitação, é cada vez mais difícil encontrar e manter casa. Em alguns casos, como o desta moradora de Cacilhas, a dificuldade está em encontrar uma solução quando as condições são demasiado difíceis de cumprir. “Já me chegaram a pedir três rendas e duas cauções de entrada, mais fiador. É muito dinheiro para dar por uma casa arrendada”, queixa-se.
Noutros casos, sobretudo no dos jovens, os preços incomportáveis das rendas e as garantias pedidas por proprietários e senhorios dificultam o acesso à independência, forçando-os a ficar em casa dos pais e a adiar o começo da vida adulta (Portugal é o sétimo país da União Europeia com pior registo nesta métrica: em média, os jovens portugueses só saem de casa aos 29 anos). “Uma pessoa não consegue construir a sua própria vida. E, mesmo quando consegue, é um quarto, ou a dividir uma renda. Arrendar uma casa sozinha hoje é impossível”, conta Mariana (que preferiu não ser identificada pelo apelido), de 27 anos e natural de Almada.
Habitante do município durante praticamente toda a vida, Paula Sousa lembra-se bem de tempos diferentes. Veio de Moçambique com os pais, no pós-25 de abril, tinha então sete anos: “Ficámos instalados em Lisboa e viemos a Almada visitar uns amigos do meu tio. Quando a minha mãe olhou da varanda para o outro lado da rua e viu um sinal a dizer ‘vende-se’, foi lá bater à porta e acabámos por ficar com ela”.
A família não mais sairia de Almada, e Paula Sousa veio a tornar-se uma cara conhecida da terra. “Às vezes na rua e perguntam-me se me vou candidatar à câmara, porque toda a gente na zona me reconhece”, brinca. Sempre envolvida com a comunidade, foi dirigente do Corpo Nacional de Escutas e ajudou a educar várias gerações de crianças. Há alguns anos, circunstâncias pessoais levaram-na a mudar de carreira, passando a dar aulas de culinária a turistas através da Travelling Spoon, uma empresa de turismo dedicada a promover gastronomias tradicionais feitas por habitantes locais. “Deixam de ser meus clientes, tornam-se amigos”, diz Paula Sousa.
A nova realidade levou a que a sua casa se tornasse também num local de trabalho, onde dá aulas e serve as refeições a turistas interessados no património local. A necessidade de uma habitação que cumprisse os requisitos levou-a, há cerca de três anos, a encontrar no tal número 14 da Avenida 25 de Abril uma solução. Paula Sousa admite que, inicialmente, considerou-a uma habitação “temporária”, mas acabou por ficar, em parte fruto de uma relação de amizade com os antigos proprietários do prédio.
Já nessa altura, em meados de 2021, os valores de renda que encontrou em nada se comparavam aos que pagava poucos anos antes. “Lembro-me de, uns anos antes, ter arrendado uma casa na rua de Olivença por cerca de 400 euros por mês… Pouco tempo depois vim para esta e, depois de negociar, consegui ficar a pagar ‘só’ 800. Um aumento brutal”, conta.
Incompatibilidades com os novos proprietários do apartamento ditaram o fim desta relação. “Disseram-me que tinha de sair, supostamente porque queriam a casa para eles. Eu até me ofereci para fazer um novo contrato, aumentar a renda, mas não quiseram”, lamenta. Forçada a carregar de novo a casa às costas, as hipóteses que encontrou colocaram-na numa situação-limite. “Aquilo que fui encontrando era muito caro, e estamos a falar de casas sem elevador. Eu já tenho 56 anos, e os meus clientes muitas vezes são pessoas mais velhas. Mas, com a pressão para sair, tive que considerar essas opções.”
A pandemia e o mercado da habitação: um antes e um depois

A subida dos valores da habitação no concelho de Almada ao longo dos últimos anos é clara. De acordo com os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), o preço médio do arrendamento em Almada atingiu, no final de 2024, os 12 euros por metro quadrado. Se comparado com número de há apenas quatro anos, o aumento é claro — no terceiro trimestre de 2020, durante a pandemia de Covid-19, o preço médio do arrendamento era de 8,27 euros por metro quadrado, refletindo um aumento de 45%.
O município de Almada é, de resto, o sexto concelho mais caro de Portugal continental em termos de arrendamento, sendo superado apenas pela cidade de Lisboa, onde o preço ultrapassa os 16 euros por metro quadrado, e pelos municípios de Cascais (15,88 euros por metro quadrado), Oeiras (13,98 euros), Porto (12,57 euros) e Amadora (12,18 euros).
“Costumo dizer que a pandemia representou um antes e um depois no mercado”, diz Pedro Cândido, agente imobiliário da KW Portugal, que entrou há precisamente cinco anos na área. Tempo suficiente, garante, para notar as diferenças. “Houve duas situações determinantes: primeiro, o teletrabalho, que veio para ficar e alterou a rotina das pessoas. Depois, com a pandemia, as pessoas começaram a dar mais valor a espaços abertos, varandas e marquises, que antes fechavam para ter um espaço extra de arrumação. E isso influencia o valor do metro quadrado.”
O fenómeno de intensificação do turismo é outro dos grandes impulsionadores deste aumento. “Quer queiramos quer não, Lisboa continua a ser uma cidade barata para um alemão ou um inglês, e isso acaba por empurrar cada vez mais as pessoas para periferias como Almada. Depois é a lei da oferta e da procura: aumentando a procura, o valor sobe”, diz o consultor.
Mariana é uma dessas pessoas. Há cerca de um ano começou a procurar casa com uma amiga: “Somos as duas de Almada e não queríamos sair, até porque estudamos e trabalhamos em Lisboa, por isso não nos podemos afastar muito”, refere a jovem, que trabalha em investigação e está a tirar um mestrado na capital.
O primeiro problema são os preços altos, depois as condições dos apartamentos: “O mais barato que encontrámos foi um T2 no Feijó por cerca de 800 euros, numa cave, só com uma janelinha e bolor nas paredes”. Mas o principal entrave, explica a jovem, são as garantias pedidas pelos proprietários: “Eu e a minha amiga trabalhamos em investigação, ou seja, somos trabalhadoras precárias. Recebo uma vez para o ano todo, e não consigo ter a certeza se daqui a um ano vou receber o mesmo que agora. E isto é um problema porque os senhorios pedem imensos documentos.”
Tanto Mariana como Paula Sousa se depararam com exigências monetárias semelhantes: dois a três meses de renda e uma a duas cauções, mais fiador. “Quem é que hoje em dia tem 4.000 euros de parte para dar assim?”, questiona a segunda. “Além de que, no caso de alguns dos prazos de pagamento que me foram aparecendo, ficava sujeita a pagar essencialmente um mês de renda adiantada para sempre, mesmo que não usufruísse caso quisesse depois sair.”
Paula Sousa queixa-se ainda do papel dos agentes imobiliários que, diz, já a induziram em erro no processo de negociação. “Há tempos, vi uma casa de que gostei muito a um preço acessível, e entrei em contacto com o agente. Ao longo de todo o processo, foi-me dito que estava tudo em ordem, que as condições que estava disposta a apresentar eram aceitáveis para os proprietários, que eles só queriam por a casa a render… À última hora, quando já estava tudo acordado e tinha data de saída da casa onde estou, entrou em contacto comigo e disse que afinal não, que não cumpria as condições.”
Pedro Cândido reconhece que a reputação do setor nem sempre é a melhor. “É um negócio de pessoas, e por uns acabam por pagar os outros.” O agente defende que devem existir mais barreiras ao exercício da profissão e uma maior exigência de formação, mas afirma que a culpa do problema da habitação não é destes profissionais. “Não há nenhum colega meu que, se tiver a oportunidade de vender uma casa a 200 mil euros, chegue ao pé do proprietário e diga: ‘Olhe, vamos vender por 180 mil’ – não estaria a fazer o seu trabalho”, defende. “Em última análise, a prioridade é sempre o proprietário, em qualquer processo negocial são os seus interesses que têm primazia. No fundo nós somos intermediários e estamos sujeitos às leis do mercado, à lei da oferta e da procura.”
Uma realidade que veio para ficar
O crescimento demográfico no concelho nos últimos anos não foi acompanhado pela construção de novos fogos, o que faz com que a balança esteja demasiado desequilibrada para o lado da procura. Se juntarmos o número de casas vazias (em 2022 eram quase nove mil), a pressão torna-se evidente.
Para tentar contrariar esta tendência, a Câmara Municipal de Almada começou recentemente a implementar iniciativas de apoio ao arrendamento. Um exemplo é o Casa Em Almada, um programa de apoio para residentes do concelho com mais de 18 anos que não tenham habitação própria na Área Metropolitana de Lisboa (AML), que pode atribuir um valor entre os 65 e os 220 euros mensais. Recentemente terminado o prazo para candidaturas, foram registados 277 pedidos de apoio, que estão neste momento em análise, informou a autarquia ao ALMADENSE.
Questionada sobre que outras medidas de apoio à habitação e ao arrendamento têm sido implementadas pelo executivo municipal, a Câmara de Almada indica que “esta não é a única resposta atualmente em curso no município”, dando como exemplos o auxílio recente a 60 agregados familiares, resultantes de uma medida provisória de apoio ao arrendamento até seis meses (e que este ano se prevê que venha a beneficiar entre 75 e 121 famílias). A autarquia recorda ainda o protocolo assinado em 2019 entre Almada e o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) que prevê “a construção, até ao segundo trimestre de 2026, de 1.169 habitações destinadas a arrendamento acessível no concelho”. Já no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a Câmara de Almada “submeteu candidaturas correspondentes a 531 fogos”, no valor global de 57 milhões de euros (10,7 milhões para reabilitação, 39,8 milhões para construção e 7,2 para aquisição)”.
Apesar destas medidas, a verdade é que em Almada o mercado não dá sinais de abrandamento, nem é esperado que preços mais acessíveis se venham a verificar. “A minha previsão é que, talvez em 2028, haja uma estabilização e uma ligeira diminuição. Mas estamos a falar de uma coisa residual, 2,3%”, afiança Pedro Cândido, acrescentando que qualquer solução de alívio provavelmente passará por legislação por parte do governo central. “Se não houver essa vontade, sem dúvida que fica difícil”, reconhece.
Para já, Mariana diz ter conseguido encontrar um quarto, por cerca de 350 euros. Equaciona sair de Almada, mas diz que a realidade em concelhos limítrofes, como o Seixal ou o Barreiro, não é muito mais animadora. “Tanto eu como os meus amigos, tirando um ou outro que tem pais com mais dinheiro, sentimos que começa a ficar tarde, somos forçados a viver em casa dos pais até aos 27, 28, 30 ou mais anos”.
Paula Sousa também conseguiu, para já, resolver a sua situação: instalou-se num apartamento mais pequeno do que aquele onde viveu até 31 de março, que lhe custará cerca de 800 euros por mês. “Não é ideal, até para trabalhar, mas vai ter de ser.” Para isso, muito contribuiu o auxílio da comunidade que a conhece. “As pessoas ajudaram-me. Tive um amigo que não via há algum tempo, que quando soube disse-me logo: ‘Paula, porque é que não vieste falar comigo? Eu ajudo-te no que for preciso’. Se não fosse isso nem sei.”
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