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Escritor Luís Filipe Sarmento “expulso” de Almada Velha: “onde ficou o meu direito à habitação?”

Com ordem de saída da casa que habita na zona histórica, Luís Filipe Sarmento sabe que não vai poder continuar a viver em Almada e receia sobre o impacto que a pressão imobiliária está a ter no território, nomeadamente no âmbito cultural e social. “A especulação está a destruir a cidade”, lamenta.

 

Na casa do escritor Luís Filipe Sarmento os livros distribuem-se um pouco por todas as divisões. “Trouxe para cá 21 estantes, algumas têm duas filas”. Os livros que chegaram no último ano já não cabem nas prateleiras. Ficaram empilhados em cima da secretária do escritório onde trabalha. 

O pequeno T2 que veio habitar há pouco mais de um ano e meio na rua do Castelo, em Almada Velha, já era pequeno para a quantidade de livros e objetos que coleciona. Mas o problema agora já não é a falta de espaço: a senhoria enviou-lhe uma carta registada informando que não pretende renovar o contrato de arrendamento, pelo que Luís Filipe e a companheira terão que abandonar a casa até ao final do mês de maio. “Não deu nenhuma justificação”, conta ao ALMADENSE. “Talvez queira converter a casa em alojamento local. Não faço ideia”, conta.

Com 67 anos, o escritor tem 32 livros publicados, foi traduzido em 17 línguas e venceu numerosos prémios literários, entre os quais o Ulysses (2021) ou o Clarice Lispector (2023). Apesar da residência em Almada ainda ser recente (antes, tinha vivido 37 anos em Sintra), já se sente integrado no meio artístico da cidade, participando ativamente em atividades culturais, em especial no núcleo histórico da cidade.

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Gostava, por isso, de poder continuar a viver na zona, mas sabe que é quase impossível. “Tenho pena de sair de Almada. Mas as minhas opções são limitadas”, lamenta. 

Diariamente, continua a ir para o escritório para escrever, mas não é fácil conseguir concentração. Com a data de saída em mente, Luís Filipe passa grande parte dos dias a ver anúncios de apartamentos para arrendar, a falar com amigos e conhecidos que possam ter conhecimento de alguma casa disponível e a visitar possíveis opções. 

“Está a ser uma barbaridade”, descreve. “Vi um apartamento minúsculo na rua Capitão Leitão por 950 euros. Na Gil Vicente soube de um T3 por 1500 euros, nem fui visitar. Parece-me um escândalo. No Laranjeiro estão a arrendar T3 por 1200 euros. É quase o preço que se paga em Lisboa”, desabafa.

 

Rendas dispararam nos últimos anos 

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Fazendo uma pesquisa pelos sites de anúncios de arrendamento, facilmente se percebe que praticamente não existem hoje casas para arrendar em Almada por menos de 1000 euros mensais. De resto, o valor do arrendamento no concelho apresentou subidas constantes nos últimos anos, tendo atingido o valor record de 11 euros por metro quadrado: um aumento de 50% em apenas cinco anos.

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“Os preços aumentaram de forma exponencial, devido à elevada procura e à pouca oferta”, assinala Marta Sousa, consultora da Remax Projeto, em declarações ao ALMADENSE. “A margem sul em geral é uma zona com muita procura. Tornou-se numa alternativa a Lisboa e isso fez com que os preços disparassem”, refere.

De acordo com a consultora, o mercado de arrendamento é hoje tão escasso que quase nem passa pelas imobiliárias. “Os proprietários não precisam: têm muita facilidade em arrendar, apesar dos valores elevados”.

Por isso, muitas vezes as agências ficam sem resposta para os numerosos clientes que procuram habitações para arrendar, mas a valores abaixo dos praticados. “Há famílias com limite de 700, 800 euros mensais… a esses valores em Almada já não se encontra nada”, aponta. Por isso, as pessoas acabam por considerar cada vez mais zonas mais afastadas do local de trabalho para habitar. “Vão para mais longe. Muitas vezes têm que deixar uma casa e encontrar outra rapidamente, pelo que consideram todas as possibilidades”.

A alternativa, aponta Marta Sousa, passa muitas vezes pela compra de apartamento. Mas também aí os preços praticados são cada vez mais incomportáveis para muitas famílias, uma vez que o valor do metro quadrado ultrapassou em Almada os 2500 euros por metro quadrado.

 

“Estou a ser expulso”

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Luís Filipe Sarmento já começou a alargar o círculo geográfico de procura de casa a toda a área da grande Lisboa. “Vou ter que ir embora. Não vou conseguir ficar em Almada. É dramático. Estou a ser expulso”, lamenta.

Em breve, será mais um dos que tiveram que abandonar a cidade devido aos preços cada vez mais incompatíveis com os rendimentos médios dos residentes. “As pessoas estão a ser lançadas para longe dos locais onde gostariam de viver para dar lugar à especulação imobiliária”, afirma o escritor.

Inicialmente, a subida galopante dos preços começou por forçar muitas pessoas a sair de Lisboa para as periferias. Agora, com o arrendamento a assumir valores incomportáveis também nas cidades à volta da capital, as famílias vêm-se cada vez mais empurradas para a periferia da periferia.

“Os bairros típicos de Lisboa: Alfama, Mouraria, Graça… já estão despojados dos seus habitantes naturais, já perderam a sua identidade, foram vendidos, descaracterizados. Aqui estamos a mimetizar o que aconteceu em Lisboa”, avisa Luís Filipe.

“Atualmente pago 750 euros mensais, podia ir até 800 euros. Mas não consigo comportar os preços que pedem atualmente”. Sabe que, tal como ele, muitas pessoas se encontram numa situação idêntica. “O que se está a passar comigo já aconteceu com outros artistas, que também tiveram que ir embora de Almada. A especulação que está a destruir a cidade”, afirma.

 

Comunidade artística sente-se desamparada

“Almada vai perder mais um artista”, lamenta, por sua, vez Rita Tormenta, que também participa ativamente em tertúlias culturais, muitas vezes juntamente com Luís Filipe Sarmento. Há seis anos a residir em Almada, a escritora e poeta defende que é importante perceber qual o impacto da pressão imobiliária no território, tanto a nível social como cultural.

Recordando que a zona histórica de Almada sempre teve um “forte espírito artístico e de comunidade”, interroga: “o que fica do pulsar da cidade quando os criativos forem expulsos?”. De seguida, dá a resposta: “o coração da cidade deixa de ser habitado. A cidade perde identidade e volta a ser um dormitório”.

Para Rita Tormenta, os artistas têm geralmente “bons hábitos de convívio com as margens e são muitas vezes utilizados para melhorar os territórios”, mas “infelizmente a condição de artista é de fragilidade”. No que toca ao arrendamento, “enfrentamos muitas dificuldades”, aponta.

Por isso, Luís FIlipe Sarmento lamenta que as entidades como a Câmara de Almada não tenham resposta para o tipo de situação que está atualmente a enfrentar. “A autarquia deveria valorizar as pessoas que contribuem para a sociedade. A classe artística marca a diferença nos territórios. Poderia haver regimes especiais de apoio à fixação de artistas”, defende.

Com uma biblioteca de mais de 20 mil livros e prestes a cumprir 50 anos de vida literária —data que assinala em 2025—, o escritor avisa: “todo este espólio está em risco”. Ainda sem saber onde estará a viver quando celebrar a efeméride, questiona: “onde ficou o meu direito constitucional à habitação?”.

 

Fotos: Bruno Marreiros

 

Preços das casas em Almada ultrapassam os 2500 euros por metro quadrado

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