O corte de eletricidade que esta segunda-feira afetou o país foi vivido em Almada com um misto de nervosismo e entreajuda. Enquanto muitos acorreram às lojas para se abastecer, outros encheram as praças, esplanadas e jardins, trazendo os grelhadores para o exterior e juntando a vizinhança.
Numa mercearia do Feijó, Ernestina Duarte estica-se para alcançar um pack de papel higiénico — um dos últimos daquele estabelecimento, ainda por volta das 15h. “Tenho quase tudo em casa, só me falta água, conservas e papel. É ir para casa e ficar lá até termos informações”, contava ao ALMADENSE esta segunda-feira à tarde, em pleno apagão energético. Tinha vindo do hospital CUF Tejo, onde o marido recebera alta hospitalar após um embolismo pulmonar, e confessava-se receosa quanto ao seu estado de saúde. “Já viu o que é, se isto continuar e não tivermos elevadores? Tenho um homem em casa com problemas nos pulmões a ter que subir as escadas até ao quinto andar. Acho que estou mais assustada do que ele”, confessa.
Para muitos, foram 12h que pareceram intermináveis. O “apagão” que, esta segunda-feira, derrubou a rede elétrica e as comunicações em toda a Península Ibérica, foi vivido em Almada num misto de inquietação e nervosismo — mas também com entreajuda e espírito de comunidade.
Nas primeiras horas do corte energético, muitos foram os almadenses que, face à incerteza e à falta de informação, acorreram aos estabelecimentos comerciais para se abastecerem para o pior dos cenários. Os garrafões de água de cinco litros, em particular, voaram das prateleiras, particularmente quando começou a circular a informação de cortes de água no Seixal e em algumas áreas do concelho, como o Feijó.

A meio da tarde já não havia supermercados abertos no centro de Almada, mas muitos almadenses ainda tentavam adquirir mantimentos. “Dá para comprar alguma coisa?”, pergunta uma senhora enquanto encosta o carrinho de compras à porta de uma loja de conveniência, perto da Praça São João Baptista. Lá dentro, uma funcionária ia guiando os clientes com uma lanterna pelos corredores mais procurados. Água e lanternas já não há, avisa. Mas ainda vão saindo sacos de carvão, velas, pilhas e fósforos. O pagamento, claro, tem que ser feito em dinheiro e aqui nem máquina calculadora há, obrigando ao regresso do cálculo mental.
Numa das poucas grandes superfícies comerciais abertas durante o “apagão”, o supermercado ALDI, no Laranjeiro, as filas iam de uma ponta à outra do estabelecimento. Os clientes transportavam carrinhos com todo o tipo de produtos, desde bens não-perecíveis a leite, ovos e até alface. Era um dos únicos pontos com multibanco funcional no concelho de Almada durante o “apagão”, que afetou os sistemas bancários.
No parque de estacionamento, António Ambrósio entra apressado. “A minha mulher já aqui veio, agora é a minha vez.” Funcionário da indústria automóvel, conta que se preparava para sair de casa e entrar ao serviço quando a rede elétrica falhou. “Vim comprar algumas coisas que não temos, fomos completamente apanhados de surpresa.” Numa altura em que a informação ainda era escassa e se receava que o “apagão” pudesse durar vários dias, admitia estar já a delinear um plano de fuga da cidade. “Tenho casa na província com tudo o que preciso, gerador, carvão… se isto continuar por muito tempo vou para lá. Ficar aqui é incomportável”.
O regresso ao rádio e o desafio do abastecimento
Numa loja multi-artigos do Laranjeiro, Cristina Pereira começa uma fila à porta. O motivo para ali estar ao calor? O rádio. “Disseram-me que, por volta das 17h, chegavam os rádios a pilhas. Tenho três em casa e nenhum funciona. São 15h30, mas já que aqui estou, fico à espera”, conta ao ALMADENSE.
Com efeito, o corte à eletricidade no mundo em rede levou muitos a voltarem-se para tecnologias mais “tradicionais”. A rádio assumiu um papel fundamental, como companhia mas também como único método de acesso à informação. Quem passasse pelas ruas da cidade ao longo do dia deparar-se-ia com um cenário comum: familiares, amigos, vizinhos e desconhecidos em torno dos carros, a ouvir as últimas atualizações dos boletins de notícias, procurando saber novidades sobre quando se resolveria o problema.
“As pessoas nestas alturas não são racionais”, dizia Cristina Pereira. “Vão comprar comida e não compreendem o verdadeiro risco: a falta de informação, as comunicações, famílias com bebés que dependem de bens eletrónicos”, assinala. No entanto, os poucos rádios disponíveis rapidamente desapareceram das lojas. “Estão esgotados, não sabemos quando voltamos a ter”, ouvia-se. Na loja onde Cristina fazia fila, às 18h também já não havia.
Entre os vários espaços que se encontravam encerrados, os postos de combustível foram dos que mais falta fizeram. A rede de abastecimento da Repsol em Almada encontrava-se fechada, com a gasolineira a admitir constrangimentos devido ao “apagão”.
Num dos postos de abastecimento, junto ao Estádio Municipal José Martins Vieira, Luís Filipe, cerca de 70 anos, e Miguel Raimundo, na casa dos 30, tentavam como podiam colocar alguma gasolina na carrinha parada pertencente ao primeiro, com recurso a um pequeno jerricã e um tubo de plástico. “Deixe lá ver se consigo ir para casa”, lamentava o homem mais velho. “Isto está impossível. Já me fui aviar às águas, e agora estou a ajudar este senhor, mas não temos informação nenhuma”, dizia Miguel Raimundo. “Dizem que isto pode durar três ou quatro dias… agora é esperar”.
Apesar da incerteza, o trânsito foi, ainda assim, circulando de forma ordeira ao longo do dia, sem registo de grandes transtornos. Na sempre movimentada zona do Centro-Sul, no acesso à Ponte 25 de Abril, com os semáforos apagados, a autogestão de carros e peões foi decorrendo de forma mais ou menos natural.
Enquanto cai a tarde, o nervosismo dá lugar à descontração
Na paragem do metro da Cova da Piedade, já ao final da tarde, Lina explica a Emílio o que se está a passar. Não se conhecem, mas a esta hora todos são vizinhos. Até a rede móvel resistir, a filha ainda lhe foi fazendo atualizações, mas àquela hora estava completamente “às escuras”. A meio da conversa, saiu apressado para apanhar o autocarro para casa. Minutos depois, regressou, derrotado pela enchente. “Não deu para entrar, vem à pinha.”
Já Lina aproveitava o silêncio da tarde quente de primavera para descansar à sombra da paragem. “O que é que vou fazer para casa? Já cozinhei para hoje, não tenho televisão, não tenho computador…”
A “calmaria”, diz Emílio, lembra-o dos tempos da pandemia (não foi o único a fazer a comparação ao longo do dia). Do alto dos seus 75 anos, já viu “muita coisa”, pelo que não se preocupa. “Ainda sou capaz de ir comprar uma coisita ou outra (…) as pessoas entram em parafuso nestas alturas. E percebo, isto tem uma dimensão muito grande, é Portugal e Espanha. Mas, com a tecnologia que há hoje, acredito que demore menos de um dia a ficar resolvido”, vaticinou, numa previsão que se revelou certeira.

Apesar das limitações e mesmo com o interior às escuras, muitos cafés continuaram abertos e, com o avançar da tarde e a temperatura convidativa, também os parques da cidade e as esplanadas se foram enchendo.
“Já não me lembrava de estar num café em que ninguém está a olhar para o telemóvel”, diz um cliente do Golfinho, na zona pedonal da rua Capitão Leitão. Enquanto se acumulam as minis, a preocupação vai dando lugar à descontração. Em frente ao Cine Incrível, experimenta-se uma versão improvisada do tradicional jogo da malha. Ali perto, no Jardim Dr. Alberto Araújo, junto à igreja, um grupo de jovens joga às cartas e outro entretem-se com um tabuleiro de xadrez.
Com o cair da noite, alguns almadenses aproveitam para jantar ao ar livre. Em Almada Velha, o grelhador está pronto, os vegetais estão cortados e a mesa de jantar já está posta no passeio.
Com tudo elétrico em casa, Martina Ronci e o companheiro decidiram fazer um churrasco e convidaram um casal amigo. “Enviei-lhes mensagem mesmo antes de ficar sem rede. Ainda bem que conseguimos combinar”, conta a italiana ao ALMADENSE, enquanto brinda com um copo de vinho.
Em Cacilhas, membros do Colectivo Estuário fizeram o mesmo. Aproveitaram a carne que estava a descongelar, juntaram os vizinhos e fizeram um convívio ao ar livre. Apesar de forçado, muitos acabaram por apreciar o dia diferente, sem distrações do telemóvel, sem desenhos animados e quase sem notícias. O ator João Tempera deixa uma ideia: “Vou fazer uma petição para entregar no Parlamento a pedir para que falte a luz noite sim, noite não. Assinavam?”, pergunta, em jeito de provocação.
A Voz aos Almadenses: “Quando a luz não liga, ligamo-nos a quê?”