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Os ventos de Abril em Almada

Luís Milheiro, jornalista e escritor

Em Almada respirava-se igualdade, no melhor sentido do termo. Ou seja, podíamos ser o que quiséssemos, sem que isso interferisse no dia a dia do outro.

Escrever sobre os “Cinquenta anos de Abril”, só faz sentido, com o pensamento Almada e nas suas gentes, fraternas e solidárias, que tive o prazer de ir conhecendo, ao longo dos anos.

Mesmo que só tivesse vindo viver para Cacilhas, em Abril de 1987, treze anos depois desse belo dia, “inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio, tão bem caracterizado pela nossa poeta maior, Sophia de Mello Breyner Andresen.

Em pouco tempo, senti logo que pertencia a esta gente, sem preconceitos nem manias de grandeza. Por ser governada pela CDU, desde 1976, a cidade tentava resistir (e ainda o conseguiu por alguns anos…) ao cavaquismo e aos “novos-ricos”, que essa figura tão bem caricaturada como “múmia”, trouxe para o poder.

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Como contraponto, é importante referir que passei a minha meninice e adolescência nas Caldas da Rainha, uma cidade conservadora, que foi sempre governada pelo partido “cor de laranja” (hoje o presidente faz partede um movimento independente, saido do PSD…), ou seja, senti sempre muito pouco, os ventos revolucionários no Oeste.

Pior que isso era o facto de as pessoas viverem muito em função do outro, no seu pior sentido. Os seus “objectivos de vida” passavam muito por se ter uma casa com mais uma divisão, ou comprar um carro mais caro, que o do familiar, vizinho ou até amigo (é uma maneira estranha de se ser amigo, mas acontece…). Para eles era demasiado importante mostrar aos outros que tinham subido mais um degrau da tal “escadaria social”, como se isso fosse a coisa mais importante do mundo

Embora crescesse ali, sempre me senti como um “corpo estranho”. Talvez isso acontecesse por a minha família ser de esquerda. E deve ter sido também por essa razão, que senti encontrar-me comigo próprio nesta nossaMargem Sul.

Em Almada respirava-se igualdade, no melhor sentido do termo. Ou seja, podíamos ser o que quiséssemos, sem que isso interferisse no dia a dia do outro.

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Embora possa existir algum romantismo nesta comparação, também existe um olhar real, a descoberta de uma cidade que em vez de se envergonhar, orgulhava-se das suas raízes operárias e também do movimento associativo popular.

É também por isso, que há um ponto que me parece importante recordar. Embora possa parecer simplista, penso que faz toda a diferença, em termos sociais.

Nos meus primeiros anos, reparei que havia muitos “maluquinhos” nas ruas de Almada. Até cheguei a pensar que havia mais gente com problemas mentais que, por exemplo, na minha outra cidade. Mas não. Com o tempo fui percebendo que os pais não fechavam os filhos com deficiência em casa. Ou seja, a vida era muito menos um “jogo de escondidas” em Almada do que nas Caldas…

Claro que hoje os tempos são bastante diferentes, muita coisa mudou entre 1987 e 2024As diferenças já não são tão notórias.

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Pois é, faço contas e reparo que já vivo em Almada há quase quatro décadas.

Um bom exemplo dessas mudanças é a própria paisagem, que fica mesmo à frente da minha casa. As noites ensurdecedoras da Lisnave dos anos oitenta, cujo barulho nos entrava em casa, pela janela da sala, sem pedir licença (os estaleiros ainda laboravam vinte e quatro horas por dia…), foram substituídas pelo silêncio e abandono…

Não conseguimos resistir, nem tão ficar indiferentes ao que se passava no resto do país. Até porque nunca fomos uma “ilha”.

A indústria foi fechando portas e os operários tiveram de se voltar para os serviços, em nome da sua própria sobrevivência. Muitos deles foram-se aburguesando, fruto da melhoria das suas condições de vida, esquecendo a espaços, Abril

Mesmo assim, penso que ainda se sente o cheiro dos cravos nas ruas. Ainda se nota, aqui e ali, alguns gestos de solidariedade e companheirismo.

Claro que não somos imunes ao populismo. É por isso que é mais importante que nunca contrariar o discurso curto e fácil, da direita e da extrema-direita. Esta gente nunca gostou de Abril porque nunca aceitaram de bom grado ter os mesmos direitos e deveres que qualquer cidadão, seja ele homem, mulher, amarelo, azul ou castanho. Se puderem, tentam esconder e destruir os cravos de todos os jardins, ao mesmo tempo quereescrevem a história. O último exemplo foram as comemorações do 25 de Novembro de 1975.

Não deixa de ser curioso o facto de os principais protagonistas do golpe (os militares do “grupo dos 9” e o PS), não o comemorarem, por não ser um momento festivo para eles. Olham-no apenas como um tempo de mudança, necessário para o país

Já a direita, tenta agarrar este dia com as duas mãos (e até os pés). Mesmo que a história nos diga, que em 1975, esta gente andava mais entretida a incendiar sedes do PCP e realizar ataques bombistas (alguns dos quais mortais), em toda a região Norte, que em apoiar golpes militares democráticos.

Mas onde se notam mais as diferenças é na forma como se vive na actualidade.

As desigualdades sociais são cada vez mais evidentes. As pessoas vivem com cada vez mais dificuldades, de Norte a Sul, ao ponto de começar a alimentar uma quase “indústria” de “ajuda aos pobrezinhos”, tão ao gosto da igreja e da classe dominante, que sempre gostou de distribuir esmolas, à gente que se conforma com o seu triste destino e deixa fugir por entre os dedos, a sua própria dignidade…

É sobretudo por isto que Abril tem de estar sempre, sempre, presente em nós.

Para acabar este pequeno texto, volto a socorrer-me da nossa poeta Sophia, que também nos disse em 1974, que livres habitamos a substância do tempo”.

Cinquenta anos depois de Abril, nestes tempos de perdas, não existe qualquer dúvida, que a Liberdade continua a ser a herança mais preciosa e viva da Revolução dos Cravos.

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