Quarta-feira, Maio 1, 2024
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“Uma Mulher na Cidade”: da “vadiagem” por Almada nasceu o primeiro álbum a solo de MirAnda

Mentora da banda OqueStrada, Marta Miranda é uma artista multifacetada que há mais de 20 anos trabalha as memórias e características do território almadense. Lança agora o seu primeiro álbum a solo, fruto de muitos passeios pela cidade.

 

É numa tarde de inverno, na Casa da Cerca, que a equipa do ALMADENSE encontra Marta Miranda, artista multifacetada e co-fundadora da banda OqueStrada. Sobre o Tejo, um cacilheiro faz a sua viagem para Lisboa. Este “comboio de Lisboa sobre a água” representa, para a cantora, a ligação entre as duas margens, que não consegue separar. “Sempre as vi em comunicação”, explica a artista. Sente-se, pois, “uma mulher da cidade”, da grande Lisboa, da ligação entre Almada e a margem norte.

Talvez por isso o primeiro tema do seu novo álbum seja o “Cacilheiro”, de Paulo de Carvalho e Ary dos Santos. A cantora acaba de lançar o primeiro disco a solo, “Uma Mulher na Cidade”, que é “uma homenagem a todas as vadias”. No anfiteatro da Casa da Cerca, confessa: “adorava tocar aqui, este sítio é abençoado. Tem uma energia muito especial”.

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Há 20 anos que Marta Miranda trabalha as memórias e características do território almadense, começando pelo Incrível Club, museu vivo da coletividade da Incrível Almadense, e passando por projetos mais recentes, como os Contos da Trafaria ou a Incrível Tasca Móvel. Foi há 23 anos que decidiu, “pelas suas características únicas”, habitar Almada, vivendo agora perto do Castelo.

Foi a andar pela cidade que Marta criou este seu primeiro álbum a solo. “Ao vadiar pela cidade encontrei muitas músicas, muitos autores, muitos desconhecidos. Estava num momento em que não me apetecia compor mais e fui encontrando músicas pela cidade, nos meus passeios. Para uma mulher é importante a vadiagem, essa liberdade que até hoje não há”, indica, assinalando que “foram muitas as músicas” que a inspiraram.

Vadiar, como refere Marta, é andar pela cidade em liberdade, é conhecer o que nela se faz. A experiência de criar a solo “foi solitária, mas está a ser muito recompensadora. Tenho de me incluir a mim no meu próprio trabalho, e isso é uma novidade para mim. Sempre me refugiei no coletivo, sempre gostei de trabalhar o talento dos outros. Foi um passo de coragem ao fim destes anos, lançar-me finalmente a solo”.

MirAnda nasceu em Lisboa, em Arroios, e passou a juventude no Alentejo e Algarve. “Depois voltei cá para cima, e vim para a Margem Sul porque em Lisboa era muito caro ser artista. Achei que deste lado tinha a distância para perceber a capital como um quadro. A nível cultural pareceu-me sempre muito mais lógico virmos para aqui, para respirar o contratempo”.

 

Do Incrível Club à Tasca Móvel

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Foi em Almada que MirAnda e Jean Marc Pablo fundaram em 2004 o Incrível Club, no Cine Incrível, na altura abandonado. Aí deram início ao conceito de “museu vivo”, criando uma plataforma para várias bandas locais e nacionais. Trabalharam a memória da coletividade, criando um espaço de convívio e partilha “onde todos estão ao mesmo nível”: a tasca. O espaço acabou por servir de inspiração a vários outros projetos na Grande Lisboa.

“Desde o Incrível Club trabalhámos sempre muito sobre a memória e a força das coletividades, sobre a capacidade que elas tinham de organização, e sobre a inspiração que podem ser”, indica Marta. “Queríamos que as pessoas ao entrarem naquela sala percebessem o que foi o passado daquela casa e que percebessem que é possível ainda trabalhar em coletivo”. A tasca é, pois, vista enquanto espaço democrático, de convívio e de cultura.

Foi esta ideia de partilha que levaram para Alfama, criando a “Tasca Beat”. “De Almada para Alfama: Alfamada”. A Tasca Beat, espaço de partilha musical, acabou por ter um grande impacto na zona envolvente. Foi enquanto estavam no Tasca Beat que Marta e Jean Marc participaram no filme “Silêncio – Vozes de Alfama”, em que se fala de vida de bairro e da gentrificação de um dos locais mais característicos de Lisboa.

A Tasca Móvel, que em setembro esteve no Museu da Cidade, é uma continuação destes projetos de democratização da cultura. É “uma espécie de espetáculo místico” de três horas, onde também se ouve falar da história da coletividade da Incrível Almadense. Um dos motes para o espetáculo “foi recuperar uma imagem da coletividade que estava muito ligada aos jogos, aos copos e à televisão, mas que no fundo não é isso”.

Até agora, a Tasca Móvel não conta com apoios da Câmara de Almada ou do Estado. “Fomos sempre um núcleo criativo muito autónomo. Conseguimos fazer este projeto bastante social e político, e interventivo, que propõe outra forma de fazer espetáculos, e achamos que ao fim destes anos devia surgir um apoio da Câmara, porque é um projeto que fala desta margem, que tem raízes”. A artista acrescenta, ainda, que é necessário pensar novas formas de relação com o público: “enquanto artista, sou público primeiro”, indica. “Sei disso, e todo o meu trabalho vem daí”.

 

“O primeiro reino do Sul”

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Para MirAnda, Cacilhas é a porta do Sul do país, e Almada é “o primeiro reino do Sul”: um local onde há uma memória valiosíssima do Alentejo e onde as coletividades têm um papel preponderante. A artista fala da “força de Almada, que é a força das pessoas que não iam para a capital”, e cuja idade – 50 anos – partilha. Mulher das margens, MirAnda procura fixar a história da cidade ainda jovem.

“Sempre houve, da minha parte, uma vontade de recuperar história. Foi isso que sempre fizemos de uma forma mais criativa”. Na Tasca Móvel, Marta convida alguns membros do público, “pessoas que são históricas, como a América, que dá alimento aos gatos de Almada Velha há 20 anos, ou Carlos, antigo guarda-costas de Álvaro Cunhal”. Foi também da ideia de cristalizar estas pessoas, este momento na história que surgiram os Contos da Trafaria, podcast dirigido por Marta durante o último verão.

O projeto vem de uma vontade de fixar no tempo a vida na localidade. “A ideia era descodificar vozes que ali estão, muito diversas, que contam a história mais distante mas também recente, num espaço em que as coisas vão mudar muito rapidamente com a gentrificação”. A criação insere-se no T-Factor da Universidade Nova, que tem como objetivo reabilitar e dar a conhecer espaços ao abandono. Foi também na vila da Trafaria, na Cova do Vapor, que os OqueStrada gravaram o filme “Chorar faz bem, Dançar também”.

Uma das vontades de MirAnda é trazer esta ideia até Almada Velha, espaço “onde há tantas figuras que deveriam ser fixadas, porque em breve podem já não conseguir viver aqui”. A artista declara-se “preocupada com Almada”, com a gentrificação que se faz sentir no centro, nomeadamente “com alguns projetos que aqui estão, como o hotel de 5 estrelas. Almada tem um centro histórico muito pequeno, e não sei se aguenta esse tipo de projetos. Quem é que depois vive isto? Acho que é uma cidade demasiado jovem para ser gentrificada desta forma.”

 

Fotos: Bruno Marreiros

Foto Tasca Móvel: Carlos Almeida

 

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0 Comentários

  • Miguel Torrão

    Não nasci em Almada mas, fui para Almada há 17 anos. Aí nasceu o meu primeiro filho.
    Continua a ser a minha cidade.

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