Depois de espalhar fotografias dos moradores nas paredes dos bairros típicos de Lisboa, a fotógrafa britânica Camilla Watson dispôs no Cais do Ginjal imagens de pescadores com o objetivo de preservar a memória dos que ali resistem.
Quando Camilla Watson começou a fotografar os pescadores do Cais do Ginjal, em Almada, rapidamente percebeu que o seu novo projeto tinha que relacionar os protagonistas com a maré.
Por isso, os retratos que a fotógrafa britânica levou para o Olho de Boi não estão ao nível do cais: foram dispostos na pequena praia entre o Jardim do Rio e o Museu Naval, instaladas nas rochas ou junto ao muro. Desta forma, as fotografias dialogam com a água do Tejo, estando visíveis apenas durante parte do dia. Quando a maré sobe, os retratos ficam submersos. Quando desce, as imagens erguem-se entre a espuma da ondulação.
Foi esta a forma encontrada pela artista britânica para devolver o poder à maré. “A maré controla tudo”, diz. Por isso, controla também “quando as pessoas podem ver as fotografias ou não”, diz ao ALMADENSE.

Luís, Vítor e Arnaldo foram alguns dos pescadores escolhidos para figurar na primeira fase do projeto “A Maré e o Pescador”. Alguns deles participaram mesmo na instalação dos retratos na pequena praia. Munidos de berbequim e gerador, vão dispondo as imagens de acordo com as indicações de Camilla.
Na imagem que Camilla escolheu para imprimir, Luís Ferrão Costa segura satisfeito um polvo de 2,7 kg. Há mais de 20 anos que pesca na zona do Olho de Boi. Vem quase todos os dias, consoante as marés.
Obrigado a reformar-se de forma prematura, acabou por tornar a pesca a sua ocupação principal e também a sua terapia. O que mais apanha por aqui é polvo, choco, robalo, safio ou sargo-alcorraz. Com o tempo, foi afinando a técnica. Aprendeu que a viragem da maré é o melhor momento para apanhar o peixe. “Posso ficar aqui todo o dia e pescar um ou dois, mas na mudança da maré apanho três ou quatro de seguida”, conta.
“São seis horas para baixo e seis horas para cima. Quando a maré para, temos 40 minutos com a água a correr muito levemente. O peixe ataca por baixo e aí é mais fácil apanhá-lo”, relata.
A memória dos pescadores
Impressos em pedra calcária, os retratos usados na primeira fase do projeto servem também como “estudo piloto em termos técnicos”, uma vez que Camilla experimentou diferentes materiais anti-abrasivos para verificar qual deles irá resistir melhor aos efeitos da água ou do sal. Um dos principais desafios é a luz do sol, motivo pelo qual as imagens foram viradas para nascente.
Foi a própria Camilla quem imprimiu os retratos com recurso ao processo tradicional de câmara escura no seu estúdio em Almada Velha. “É um trabalho muito minucioso. Não posso reutilizar a pedra. Por isso, tem que sair à primeira”, refere.
Desde que veio viver para Almada, em 2018, que os pescadores que resistem em Cacilhas, no Ginjal e no Olho de Boi chamaram a atenção da artista. “Parecem viver no seu próprio mundo, num tempo diferente, mais lento”, descreve.
Para a fotógrafa, os pescadores são hoje os guardiães da memória de uma frente ribeirinha que outrora pulsava de movimento.

Muitos dos que continuam a ir pescar para o Ginjal trabalharam nas fábricas que ali existiram, das quais hoje só restam ruínas. Outros vêm de mais longe, de Lisboa, de Alverca, do Barreiro, de Corroios, alheios aos turistas que por ali passam diariamente.
“São usados como pano de fundo para as fotografias dos turistas, mas não interagem com o mundo transitório que os rodeia. Parecem invisíveis às pessoas que por ali passeiam”, nota Camilla Watson, que quis ouvir as suas histórias e dar-lhes o protagonismo que geralmente não têm.
Desta forma, o projeto pretende também manter viva a lembrança desta comunidade, que em breve poderá desaparecer. “Quando começar o desenvolvimento daquela zona, o que fica da memória destes pescadores?”, questiona a artista.
De vez em quando, também os pescadores ouvem falar dos planos de requalificação daquela zona, que poderia afastá-los dali. Mas, por enquanto, não se preocupam: “há muitos anos que dizem que vai avançar, mas não vemos nada a acontecer”, diz Luís Ferrão. Apesar disso, sabem que um dia poderão deixar de ter autorização para ali pescar. Por isso, é com orgulho que veem a sua imagem gravada na pedra de calcário agora fixada na rocha. “Quando eu morrer, alguém vai ver e dizer: ali está o Luís, o pescador”.
Trabalho em comunidade
Natural do País de Gales, no Reino Unido, Camilla mudou-se para Portugal em 2007. Antes disso, viveu quatro anos em São Paulo, no Brasil, onde foi desenvolvendo o gosto pela atividade de intervenção comunitária. Entre projetos fotográficos, também ensinou fotografia a crianças que viviam numa favela, em colaboração com a ONG Meninos do Morumbi.
Foi numa viagem de trânsito para a São Tomé e Príncipe que se apaixonou por Lisboa, acabando por decidir vir para Portugal. Viveu na Mouraria até 2018, ano em que decidiu atravessar o rio e mudar-se para Almada.
Foi naquele bairro lisboeta que resolveu focar-se em projetos comunitários e de homenagem aos moradores. Logo em 2009, começou a espalhar pelas paredes dos bairros históricos de Lisboa retratos dos residentes, como forma de lhes prestar tributo. Inicialmente, a ideia era fazer uma exposição temporária, mas esta acabou por se tornar permanente, perpetuando nas paredes das casas a tradição dos bairros. 15 anos depois, as imagens continuam na Mouraria, no Castelo e em Alfama. Alguns dos retratados já não moram ali, mas mantêm-se presentes nas fotografias de Camilla.
“Nunca pensei que fosse perdurar tanto tempo, mas os moradores já não deixam que as fotos saiam dali”. De resto, o projeto continua vivo. Todos os anos, Camilla vai acrescentando imagens à coleção. “As pessoas pedem para serem fotografadas, então a exposição vai aumentando”.
O trabalho que desenvolveu nos bairros de Lisboa espelha a forma de Camilla trabalhar. Sempre quis que os seus projetos fotográficos fossem acessíveis a toda a gente. Por isso, gosta que estejam no espaço público, de forma a que todos possam observar e interagir. Usa a fotografia para fomentar a inclusão social e dar visibilidade a pessoas esquecidas. Em suma, “fazer a mudança”, admite.
É também esse o objetivo do projeto “A Maré e o Pescador”, que agora os visitantes podem observar no Olho de Boi. Uma vez mais, Camilla fez questão de dar protagonismo a um grupo que geralmente vive no anonimato. Desta vez, fez dos pescadores o centro de uma narrativa que ainda está por contar e que Camilla ainda espera poder continuar, uma vez que o projeto ainda está inacabado.
Conseguiu imprimir as primeiras seis fotografias graças a um financiamento do programa Mural 18, mas tem como objetivo continuar a colocar imagens ao longo do Cais do Ginjal, guiando quem ali passa pela memória do espaço. Também já recebeu autorização do Porto de Lisboa para instalar uma pedra maior junto ao Terminal fluvial. Neste momento, está a angariar fundos para poder prosseguir, esperando poder contar com o apoio de organismos públicos ou da Câmara de Almada.
“Almada é terra de pescadores, mas não há um museu que preserve esta memória. São uma parte integrante da cidade que precisa de ser recordada e celebrada. Este é o meu contributo”, aponta.
Fotos: Bruno Marreiros
Vídeo: Camilla Watson
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