Para Karas, encenador e membro da associação cultural Ninho de Víboras, “em Almada, a participação cívica passa muito pelo teatro”. Este ano, o grupo traz “A Noite dos Náufragos”, que marca o encerramento da 27. ª edição da Mostra de Teatro.
“Mais do que mostrar o que cada grupo anda a fazer, a Mostra de Teatro é também dialogar, conversar com o público”. Quem o diz é Karas, encenador e membro da associação cultural Ninho de Víboras que, desde 1996 – o primeiro ano da Mostra – traz teatro e performance a Almada. Este ano, o grupo apresenta “A Noite dos Náufragos”, que marca o encerramento da edição deste ano da Mostra.
Karas faz parte da Ninho de Víboras desde o seu início, há 27 anos. A associação é composta por nove membros e uma garagem, onde se realizam os ensaios. De resto, há artistas que se juntam aos projetos conforme a sua disponibilidade. “Na peça que vamos apresentar na Mostra, estamos a trabalhar com pessoas com quem nunca trabalhámos antes”, indica Karas. “O teatro também traz isso. É sempre excitante contactar com pessoas que têm experiências e abordagens ao teatro diferentes”.
Populismo e conspiração n’”A Noite dos Náufragos”
A 29 e 30 de novembro, a Ninho de Víboras leva ao palco do Auditório Fernando Lopes-Graça “A Noite dos Náufragos”, um espetáculo que “reverbera no mundo actual”, onde “há muitas figuras populistas que se apropriam dos mecanismos da democracia para, através do seu carisma pessoal, de alianças e jogos de poder, acabar por comprometer os verdadeiros valores da democracia”.
A criação de Alberto Luengo, encenador e músico espanhol radicado em Portugal, passa-se em Roma, no ano de 63 a. C. Numa casa nobre, sussurra-se uma conspiração contra a República, então liderada pelo “homem novo” Marco Túlio Cícero. Apenas na manhã seguinte se saberá a resposta da adivinha que circula pelas vielas da capital: “Sairá o nosso cônsul/ bem-vestido / ou resplandecente?”
Este será um “novo e original épico”, como pode ler-se na ficha informativa, que tem como pano de fundo uma das mais importantes conspirações ocorridas durante a República Romana (séc. I a. C). Tal como no anterior projeto do encenador para a Ninho de Víboras, “A Noite dos Náufragos” constitui uma total imersão num tempo e num espaço que, afinal, tanto têm em comum com a realidade atual.
Para Karas, esta é uma peça “longa e exigente”, na linha das criações apresentadas pela Ninho de Víboras. Ao público, pede-se “uma relação com o teatro diferente daquela que as pessoas têm, hoje em dia, com outras formas de arte, mais efémeras e mais comerciais”. Os bilhetes têm o valor de 6 euros, com descontos para audiência jovem e sénior. A bilheteira abre uma hora antes de cada sessão.
27 anos de Mostra
A Ninho de Víboras participa na Mostra desde a primeira edição, tendo sido uma das associações impulsionadoras. A iniciativa, indica Karas, começou “com um convite feito pelo município às associações para se juntarem todas no mesmo evento e mostrarem o que se estava a fazer no teatro, em Almada”. A primeira edição decorreu integralmente na Incrível Almadense. Para se poder realizar o evento, nessa época, a Câmara disponibilizou todos os meios necessários. “Foi talvez a Mostra com mais meios, mais possibilidades”, lembra o encenador.
A Mostra surgiu, há 27 anos, a partir “de uma sugestão dos grupos de teatro de Almada ao município, que fizeram ver que havia uma riqueza muito particular do teatro em Almada, e que seria proveitoso para todos ter condições de apresentação coletivas”. Assim se criou o evento, que permite ao público almadense contactar com as diversas abordagens ao teatro que existem na cidade e cria uma sensação de comunidade, não só para quem faz como para quem usufrui.
Durante as duas primeiras décadas, lembra Karas, “a Mostra sempre foi produto de um diálogo intenso entre as associações almadenses e o município. Hoje em dia, a organização está muito mecanizada por parte da autarquia”, aponta, lamentando que este ano não tenha havido apoios financeiros para todos os grupos. “Cria-se, assim, uma situação de desequilíbrio”, explica Karas, com “muitos dos grupos a optarem por não participar”.
Manter a tradição do teatro
A Ninho de Víboras, porém, decidiu participar, mantendo a tradição com mais de duas décadas. “Penso que este é mais um motivo que torna importante mantermos a nossa presença na Mostra e lutarmos para que esta não se transforme num evento cristalizado. Este ano talvez haja menos espetáculos do que no ano anterior mas a riqueza de propostas é, ainda assim, muito grande”. Para o encenador, faltam na Mostra “espaços de diálogo”, que permitam ao público e artistas debater e conversar sobre os espetáculos. Com 25 grupos participantes em 2021 e 2022, a Mostra de 2023 conta com apenas 17 grupos.
Para Karas, é necessário manter a tradição do teatro em Almada, que “começa no século XVI, passando pelo século XX, em que o teatro chegava a ser uma forma de resistência antifascista”. Em Almada, a participação na vida da cidade inscreve-se nas próprias práticas teatrais: “é importante não esquecer que em Almada a atividade cultural é uma forma de participar na vida da pólis, da cidade. A nossa vida cívica passa muito pelo teatro”, refere o encenador.
Fotos: Bruno Marreiros
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