Foi há oito anos que Davide Freitas moderou a primeira sessão da Comunidade de Leitores de Almada, na biblioteca municipal do Feijó. Entre livros, doces e conversas, são muitos os que encontram neste espaço novas amizades.
Ainda antes da hora marcada, já começam a chegar à ampla sala da biblioteca municipal do Feijó os membros da Comunidade de Leitores. Entre caras novas e outras já conhecidas, fala-se de teatro, de prendas de Natal e das castanhas que um dos presentes trouxe para acompanhar a tarde de discussão literária. Com 15 pessoas a marcar presença na sala e três através do ecrã do computador, começa o debate sobre “Mrs. Dalloway”, de Virgínia Woolf, livro escolhido para mais uma sessão em torno da leitura.
Davide Freitas, o impulsionador da iniciativa, arranca mais uma reunião com a apresentação do livro e da autora inglesa. Questionando a rigidez do período histórico que vivia, Virginia Woolf é reconhecida pela sua subversão da narrativa tradicional, criando em Mrs. Dalloway uma história a vários tempos – tempo afetivo, cronológico e histórico, não fosse o primeiro nome da obra “As Horas” – e onde se questionam vários poderes: o poder religioso, histórico e da medicina.
Os leitores diferem na sua opinião sobre a obra: alguns declaram abertamente que “não é um livro fácil” ou que “é um livro demasiado frio”, enquanto outros apreciam “o jogo de espelhos” traçado pela autora. “Mrs. Dalloway não consegue estar no presente”, aponta Myriam que, aos 80 anos, é uma das leitoras mais participativas. Já Dinalva, uma das três intervenientes brasileiras, refere ter sentido “uma enorme compaixão pela personagem”, cujos passeios por Londres fizeram recordar as suas voltas por Almada Velha. Durantes as três horas em que dura a sessão da Comunidade – que não parecem três horas no seu constante movimento e animação, acompanhado sempre por comes e bebes – há espaço para as opiniões de todos.
Entre a assistência, as mulheres estão em maioria. Mas a marca é a diversidade: há professores, reformados mas também alguns jovens – alguns a participar pela primeira vez. Há espaço para todos, desde os que desejam intervir, a grande maioria, aos que preferem ouvir e tirar notas. Ao lado de cada exemplar do livro vêem-se apontamentos e tópicos de conversa. Um dos leitores refere que “o livro é inovador na forma, mas conservador do ponto de vista da história e da construção das personagens”. E começa o debate: outra leitora argumenta que o livro “traça sobretudo um retrato realista e que cabe aos leitores interpretar e agir”.
Ao dinamizador Davide Freitas supreenderam desde o primeiro encontro as leituras profundas e intervenções fundamentadas. A “qualidade dos leitores” que, ao longo do tempo e dos encontros, se vão tornando cada vez mais capazes. “Esta é uma atividade que pretende juntar duas vertentes da leitura”, indica, “a vertente individual e a vertente social, onde há troca de opiniões e onde se percebe que pode haver outras interpretações da obra” diz ao ALMADENSE. São vários os membros que indicam ter, depois do encontro, repensado o livro e a forma como o leram.
Oito anos de leituras em conjunto
Foi em 2015 que a Comunidade de Leitores de Almada teve a sua primeira sessão, com a discussão da obra “Se Isto é um Homem”, de Primo Levi. “Nessa primeira sessão participou muita gente, mais do que esperávamos”, lembra Davide Freitas. “Desde aí, tem sido um desafio reter os leitores”. Até porque os livros escolhidos pelo moderador não são os de mais fácil leitura: “além de ter o cuidado de os livros existirem na biblioteca, tento sempre ter uma escolha criteriosa e de qualidade”, indica. Davide acredita na capacidade de todos os leitores de chegar a cada livro, cultivando as suas capacidades.
Maria Elvira, a “madrinha da Comunidade de Leitores”, que participa desde a primeira sessão, lembra os vários livros que já leu com um sorriso no rosto. “Li livros que nunca pensei conseguir ler”, indica, “como a assustadora “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, e conheci autores em que nunca teria pegado”. Com o nono ano de escolaridade, a leitora pensara que muitos livros estariam fora do seu alcance, o que se provou não ser o caso. Para além disso, foi a Comunidade que lhe permitiu “desenvolver a capacidade de falar em público” e, mais importante, conhecer pessoas que partilham os seus interesses. “Conhecemos aqui pessoas que depois encontramos noutros eventos, no teatro, no cinema…”, confessa.
Dinalva começou a participar na Comunidade em 2020. “Conheci o Davide na biblioteca central, falámos dos livros que estava a ler e acabou por convidar-me a assistir. Na altura nem sabia onde era o Feijó!”, lembra entre risos. Três anos depois, a leitora de São Paulo encontra na biblioteca municipal José Saramago um espaço “de partilha de experiências de leitura e não só”. Para além dos encontros, o grupo organiza por vezes atividades relacionadas com os livros, como o roteiro por Lisboa inspirado n’“O Ano da Morte de Ricardo Reis”, criado por um dos leitores.
Davide tenta sempre alternar entre obras estrangeiras e obras de autores portugueses, promovendo a diversidade. “Também já tivemos ciclos temáticos”, indica, “e em 2024 a ideia é ler vários livros que foram censurados pelo Estado Novo, para comemorar os 50 anos do 25 de abril”. A próxima sessão terá lugar a 9 de dezembro, pelas 15h, e serão discutidos vários contos de Edgar Allan Poe.
A Comunidade de Leitores é uma atividade de frequência mensal promovida pela rede de bibliotecas de Almada, com vista à promoção de hábitos de leitura. Sempre ao sábado, o encontro é aberto a todos, mediante inscrição através do e-mail biblactividades@cm-almada.pt .
Fotos: Bruno Marreiros
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