Penso: e o almoço das miúdas? Como está tudo na escola? Telefones e internet ainda estão operacionais e as funcionárias sossegam os pais. O almoço está garantido. Vale a pena ir buscá-las? Não vale a pena alarmismos.
Vera Moutinho, jornalista e residente em Almada
Quando o apagão chegou, estou a pagar as compras num grande hipermercado, dentro de um centro comercial em Almada. A loja fica sem electricidade apenas por alguns segundos, ao contrário de todo o centro comercial que fica praticamente às escuras. Uma falha de energia?
Empurro a custo o carrinho de compras pelo tapete rolante parado e sigo de carro até casa. Tento ouvir o noticiário na rádio, mas nada. Penso: e o almoço das miúdas? Como está tudo na escola? Telefones e internet ainda estão operacionais e as funcionárias sossegam os pais. O almoço está garantido. Vale a pena ir buscá-las? Não vale a pena alarmismos.
Procuro as primeiras informações oficiais ao mesmo tempo que os boatos começam a querer ganhar terreno. Um acidente com um hidroavião, um ciberataque, um ataque russo. Alguém partilha num grupo de WhatsApp a pergunta que fez ao ChatGPT: “Causas do apagão”. Fontes fidedignas, pede-se, e restabeleço a esperança na humanidade. Nas redes sociais a mentira é rapidamente desmentida. Menos mal.
Num dia quente, pergunto num grupo quanto tempo aguentarão os frigoríficos desligados. Tapo as janelas da cozinha com panos pretos para afastar ao máximo o calor. Mas saio para comprar gelo, não vá ser preciso. A mercearia que fica a dois passos de casa está cheia. Os vizinhos compram água, fruta, leite, tabaco. “Tem gelo?”, pergunto. Levo dois sacos, quatro euros. Nas escadas do prédio encontro a vizinha do 1.º andar carregada com um saco cheio de pacotes de leite e um garrafão de água. Ajudo-o a subir os últimos degraus. “Isto vai durar três dias!”, diz-me. Digo-lhe que ainda é cedo para saber, que não há confirmação da causa do apagão, nem do tempo que vai demorar a repor a electricidade. No rés-do-chão do prédio, os vizinhos fazem uma churrascada com amigos.
Quanto tempo ficaremos sem electricidade? Multiplicam-se partilhas de notícias no WhatsApp, os jornais falam de pessoas presas em elevadores, confusão no aeroporto, já há filas para comprar água. Há notícias nos jornais internacionais, as primeiras fotografias do retrato da luz que falha em pleno dia. Às 14h agarro-me a uma notícia do El Mundo, que cita a Red Eléctrica espanhola: “entre 6 a 10 horas para recuperar a energia totalmente”. Confio na informação oficial, até ao final do dia isto resolve-se.
Pouco depois, perco o acesso à internet. Chamadas telefónicas tornam-se quase impossíveis. Sem notícias pego em livros. Mas decido antes ir encher garrafas, jarros e frascos de vidro com água, não vá ser preciso. Volto aos livros, mas lembro-me que há uns tempos o meu sogro ofereceu à minha filha mais velha um pequeno rádio a pilhas. Vasculho, não encontro. Deixo os livros, vou para o carro ouvir as notícias. Viva a rádio. Penso que é melhor comprar uma lanterna, não vá ser preciso. Consigo agarrar a última lanterna disponível numa loja “do chinês”, mas rádio “já não temos”.
Vou buscar as miúdas à escola. “Daqui a duas horas já não há água”, atira um pai ao portão. Digo-lhe que essa informação ainda não está confirmada, que pode haver constrangimentos mas que dificilmente a água vai “acabar” completamente dali a duas horas. Não vale a pena alarmismos. Olha para mim incrédulo, como me atrevo a duvidar do apocalipse? Já em casa, vários puzzles, jogos de dominó e plasticinas depois, convenço as miúdas a partirmos na missão de encontrar um rádio. Percorremos o centro de Almada, mas mal passamos da entrada das lojas. ”Já não temos rádio, já não temos lanternas”. Decidimos que mais vale salvar dois gelados da arca que já começa a ceder ao calor num café do bairro. É o contributo destas pequenas cidadãs para o bem comum.
E o jantar? Com fogão e fornos eléctricos, rumamos a casa do avô para um jantar de ovos mexidos com cogumelos à luz das velas, lanternas e da chama do fogão a gás. A luz do sol começa a ir embora. As miúdas espreitam pela janela e vêem duas famílias que carregam no carro panelas com o jantar que dará para muitos. E reparam numa árvore junto à janela do avô. “É uma nespereira”, explico. O avô conta que foi ele quem a plantou, há mais de 30 anos. Quase lhe conseguimos tocar.
As miúdas estão felizes. Devia faltar a luz mais vezes. Quando a luz se desliga, ligamo-nos a quê?
A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
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