Numa visita guiada ao castelo, os investigadores mostraram uma prospeção arqueológica inédita no local e apresentaram as primeiras descobertas aos almadenses. Muitos outros segredos ficarão escondidos por baixo dos edifícios existentes.
Pouco passava das 10h da manhã e já um grupo de pessoas aguarda junto ao portão. Antes de mais, é preciso cumprir as formalidades — identificar adultos e crianças com os respetivos documentos —, afinal estavam a entrar em território da Guarda Nacional Republicana (GNR), especificamente do Destacamento de Intervenção de Setúbal, que ocupa o interior do Castelo de Almada.
O acontecimento é invulgar: a GNR acedeu abrir as portas à população por um dia, na quinta-feira, dia 18 de julho. Mas mais inédito é o que ali se passou nas últimas semanas: com a autorização da Guarda, os arqueólogos do município, juntamente com investigadores da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-Nova), abriram quatro buracos nos caminhos do interior do castelo. O objetivo é conhecer melhor a ocupação deste espaço.
Não a ocupação presente — que será, talvez, uma das melhores documentadas —, mas o que aconteceu no passado, no último milénio. Parte da motivação vem da incógnita sobre a ocupação que este espaço virá a ter no futuro. O castelo de Almada está integrado no Revive – Reabilitação, Património e Turismo, um programa do Governo que visa conceder a utilização de espaços públicos para fins turísticos por parte de privados mediante a sua requalificação.
A maior parte das escavações arqueológicas em Portugal são motivadas pela construção ou reconstrução de edifícios e outras estruturas, diz André Teixeira, investigador da FCSH-Nova. O primeiro problema é que estas escavações são feitas no menor tempo possível porque os empreiteiros ficam com a obra parada enquanto os arqueólogos fazem o seu trabalho. O segundo é que o trabalho do arqueólogo não fica completo, porque os materiais recolhidos raramente são devidamente estudados e colocados à disposição da população. O conhecimento deve ser devolvido ao público, defende o investigador perante o grupo de cerca de 25 pessoas que o ouvem atentamente, protegidas do sol tórrido pela sombra do edifício da GNR.
Antecipando que o Castelo de Almada venha também a ser ocupado por uma entidade privada, com um destino que não é possível antever, e que as escavações tenham de ser feitas de forma acelerada, a equipa de arqueólogos decidiu começar mais cedo a explorar os segredos escondidos nas muralhas e no subsolo. Os materiais relevantes que aqui encontrarem serão recolhidos, tratados, estudados e “devolvidos” à população. Ou seja, os almadenses serão informados sobre o progresso dos trabalhos e poderão até vir a encontrar algumas das peças recolhidas nos espaços museológicos do concelho. Acima de tudo, o conhecimento disponibilizado permitirá à população ter uma opinião informada quando a ocupação futura do castelo estiver em avaliação, defende o investigador.
O Castelo de Almada terá origem numa fortaleza medieval islâmica

A hipótese colocada pelos arqueólogos é que a ocupação inicial seja islâmica e remonte ao século XI, o “hosnel Madan” como aparece referido. “Hosnel” significará fortaleza, castelo ou até, de acordo com uma designação mais moderna, o equivalente a sede de concelho, explica Telmo António, arqueólogo do município, aos visitantes reunidos em torno do buraco escavado junto a um dos edifícios. Enquanto um arqueólogo continua a tirar entulho da escavação e a procurar materiais relevantes para a investigação, Telmo António explica que ali estará, provavelmente, uma habitação islâmica, porque no interior das paredes se vê um estuque com argamassa de cal.
Naquele sítio estará um canto dessa habitação, como a esquina descoberta indica, mas o resto continua por baixo do agora edifício da GNR e não pode ser explorado. O objetivo dos investigadores é chegar ao pavimento (o chão da habitação) e, com base nas cerâmicas e outros objetos e vestígios, determinar quão antiga é e que uso era dado àquele espaço. A descoberta de vestígios islâmicos é de enorme importância para os investigadores: apesar de suspeitarem da sua existência, há poucas evidências sobre a ocupação nesta época. A povoação seria pequena e viveria confinada pelas muralhas do castelo, a julgar pela falta de indícios na zona velha de Almada nos arredores.
Telmo António não exclui, no entanto, uma ocupação ainda mais antiga, romana ou da idade do ferro. Da idade do ferro no primeiro milénio antes de Cristo, é o Sítio Arqueológico da Quinta do Almaraz, à distância de uma estrada empedrada (de frente para o portão da GNR), e que aproveitou também este ponto alto de Almada, como forma de defesa. Estes vestígios mais antigos podem ter ficado enterrados com a construção da povoação medieval, explica o investigador.
Dois esqueletos e um aterro de sepulturas revolvidas

O próximo ponto da visita passaria despercebido sem o devido enquadramento: um buraco relativamente pequeno em área e profundidade, sem qualquer arqueólogo a trabalhar nele e parcialmente coberto. Explica a investigadora no local que ali foi encontrado um esqueleto humano e que estudar ossadas foge das competências desta equipa de investigação. Os arqueólogos estudam a cultura e os modos de vida das populações com base nos vestígios que deixaram, nomeadamente os materiais e edifícios, mas os vestígios humanos, como os ossos, são estudados pelos antropólogos. Por agora, o local não será mexido para não prejudicar a futura investigação antropológica.
Uns passos mais à frente, outro esqueleto — também ele tapado — numa escavação bem maior. Para os arqueólogos, encontrar estas ossadas foi mais uma confirmação do que uma surpresa. Os mapas antigos do local indicavam que naquele espaço estaria a igreja matriz e que, em torno dela, poderia existir um cemitério. Que área ocupava o cemitério é impossível dizer por agora ou talvez até no futuro. A centímetros de distância do esqueleto e de parte do cemitério ainda conservado, encontraram um aterro do século XVII onde o solo foi escavado indiscriminadamente revolvendo sepulturas e misturando as ossadas. A igreja a existir estará por baixo de um dos edifícios da GNR.
Ao lado da escavação está pendurada uma peneira. Dois estudantes da FCSH-Nova, entre os vários que participam nesta escavação, despejam os baldes de terra retirados do buraco e escolhem os materiais com mais interesse. Até ver, os achados são sobretudo restos de cerâmica da vida quotidiana, como telhas, e conchas, que serão restos da alimentação da população que ali viveu. Ocasionalmente, um ou outro fóssil, mas esses são muito anteriores à ocupação humana e não entram no âmbito desta investigação.
Se é almadense e se interroga sobre as muralhas cimentadas do castelo, os arqueólogos também procuram respostas sobre isso. Não exatamente sobre o cimento, que é fruto da reconstrução moderna, mas sobre o que foi sendo feito ao longo dos séculos. Os mapas antigos mostram que o limite desenhado pelas muralhas será o da ocupação islâmica, que se terá mantido praticamente o mesmo ao longo do tempo e das várias ocupações e usos. A principal diferença estará na entrada do castelo, que agora se faz pelo lado este, no portão da GNR, e que no passado seria feita pelo lado oposto, pelo Jardim do Castelo, agora um espaço de fruição pública.
Num dos pontos de interesse é escavado o interior da muralha à procura dos vestígios das obras feitas na estrutura, noutro a sondagem é feita na própria parede muralhada. De picareta em riste, o arqueólogo vai retirando a camada de cimento que cobre a estrutura à procura dos materiais utilizados e dos vários níveis de construção sobrepostos.
De regresso à entrada, à direita, avista-se um novo grupo de cerca de 25 pessoas à sombra do edifício da GNR que ouve as explicações de um arqueólogo da equipa. Do lado esquerdo, o convite a uma vista desimpedida sobre a cidade de Lisboa. O melhor, no entanto, é conservar a distância devido à instabilidade da arriba que pende sobre o Cais do Ginjal.
Fotos: Vera Novais
Quinta do Almaraz: o reencontro com uma História de há três mil anos
Bom dia. Sou de Almadense e na minha opinião o forte de Almada devia ser devolvido ao seu povo e a quem visita a cidade, como fazem noutros municípios, com entradas guiadas ou não. Quanto à corporação da GNR, devia ser feito um edifício de raiz num outro lugar para a sua colocação. No forte devia ficar só um posto de vigia e controlo. Com os melhores cumprimentos,
José Gomes
Obrigada pela reportagem, as deste tipo são cada vez mais raras. Gostei de ler, deviam desenvolver mais sobre a ocupação islâmica na zona.