40 anos depois de descoberto, o sítio arqueológico vai finalmente ser dado a conhecer aos visitantes da zona ribeirinha de Cacilhas. Trata-se da antiga Fábrica Romana de Salga, um pedaço da relação milenar entre Almada e o mar.
Durante décadas, quem circulava no início da Rua Cândido dos Reis, junto ao Chafariz de Cacilhas, dificilmente imaginava que escondido debaixo do pavimento se encontrava um dos vestígios mais importantes da presença romana no concelho de Almada.
Trata-se da antiga Fábrica Romana de Salga de Peixe, que se encontra neste momento em processo de musealização e será em breve dada a conhecer aos visitantes da zona ribeirinha de Cacilhas.
“Esta antiga fábrica é o testemunho mais relevante que existe da presença romana no concelho de Almada e, no entanto, era quase desconhecida. Dada a sua importância, faz todo o sentido que a população possa usufruir do sítio e conhecê-lo”, conta Telmo António, arqueólogo da Câmara Municipal de Almada (CMA), ao jornal ALMADENSE.
Com a ajuda de baldes de plástico, pequenas vassouras e pás, Telmo e a equipa vão desenterrando uma parte do passado. Pelas finas grades que delimitam a entrada ao local, vê-se uma larga porção do passeio a descoberto: aqui se encontram as fundas estruturas retangulares, duas à entrada e uma terceira mais próxima do Chafariz, destinadas à salga de peixe e mistura de preparados.
Será a primeira vez que a cidade apresenta a Fábrica de Salga Romana como museu incorporado no próprio passeio. Sem horário de fecho ou abertura, o sítio arqueológico ficará coberto por um vidro ao nível do pavimento, que será acompanhado de material multimédia informativo. O projeto faz parte da obra de requalificação do Largo de Cacilhas, que pretende estabelecer um circuito turístico à beira-Tejo, criando em Cacilhas um polo museológico, que inclui também o submarino Barracuda e a Fragata D. Fernando II e Glória.
O sítio arqueológico foi descoberto em 1981, durante obras de manutenção a condutas de água e esgoto. Foi efetuada uma escavação de emergência e, após o levantamento de todo o espólio, a Fábrica Romana de Salga de Peixe, cuja atividade se prolongou sensivelmente do séc. I ao III d.C., durante o período Romano Imperial, foi coberta por um pavimento de pedra por decisão da CMA.
“Mais tarde, em 1987-88, fez-se uma intervenção planeada que pôs a descoberto as estruturas que tinham sido identificadas e em que estamos agora a intervir. Na altura, não existiam condições de espaço urbano para musealizar a zona. As cetárias foram tapadas novamente como forma de proteção”, explica Telmo António.
As cetárias são tanques retangulares destinados à salga e fabrico de misturas de peixe. Durante o período de inatividade, após as escavações, os vestígios arqueológicos foram preservados através do enchimento das cetárias com areia limpa.
Neste complexo, há mais de dois mil anos, salgava-se peixe como forma de conservação do alimento e faziam-se preparados como pastas e molhos derivados dos excedentes do peixe, muito apreciados na gastronomia do Império Romano, como o garum –uma mistura altamente nutritiva, feita a partir da maceração em sal das entranhas de peixe.
O local conta igualmente com a proteção legal do estatuto de Sítio de Interesse Público, concedido em 1992, que impede movimentações significativas no subsolo e inviabiliza outras construções que possam danificar a estrutura arqueológica.
A cargo de Telmo António, João Santos, Jorge Almeida e Sérgio Rosa, os trabalhos para a visualização das Salgas começaram em abril de 2021 e encontram-se neste momento em curso, ainda sem data para terminar. A conclusão da obra “dependerá de muitos fatores, entre o próprio decorrer dos trabalhos em todo o Largo de Cacilhas e a complexidade inerente a qualquer intervenção arqueológica”, explica Telmo.
Cacilhas como zona “portuária de grande importância” desde a Idade do Ferro
A Fábrica de Salga era, provavelmente, composta por treze cetárias das quais foram identificadas dez. A totalidade do complexo estava coberta por um telhado cujos vestígios foram encontrados no interior de alguns dos tanques. Com a finalização deste projeto, três destas cetárias ficarão visíveis.
“Com base na informação que temos de outros sítios desta época e tipologia, não só em Portugal, mas de todo o mundo Romano, e considerando alguns vestígios encontrados como escamas de peixe, sabemos que aqui se desenvolvia atividade de salga e preparados de peixe”, explica o arqueólogo.
A proximidade ao rio e a curvatura da costa em forma de abrigo contribuíram para a fixação de atividades comerciais e industriais na zona ribeirinha de Cacilhas, como acontece com este sítio arqueológico.
“Nos anos 90, no interior do edifício da antiga Caixa Geral de Depósitos foram identificadas mais cetárias que faziam parte deste complexo e alguns vestígios contemporâneos da Quinta do Almaraz. Esta foi sempre uma estrutura portuária de grande importância desde a Idade do Ferro”, acrescenta Telmo António.
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