Diogo Martins, especialista em transportes públicos acessíveis
Ao longo dos anos, as opções estratégicas deram prioridade ao automóvel. Tivemos investimentos de milhares de milhões de euros em infraestruturas rodoviárias, inclusive no concelho de Almada, mas este investimento não foi acompanhado por opções iguais nos transportes públicos.
Nos últimos anos, temos vindo a assistir a mudanças estruturais nos sistemas de transportes da área metropolitana de Lisboa, com a introdução do Navegante Metropolitano e da Carris Metropolitana. Estas alterações vieram trazer um crescimento no número de passageiros transportados, com várias linhas da Carris Metropolitana a registar um crescimento na ordem dos 40%. Mas este crescimento não foi acompanhado de um crescimento da oferta também nos outros modos de transporte, como comboio ou metro. Teremos nós falhado no planeamento?
Almada é um caso de desiquilíbrio entre a evolução num meio de transporte, os autocarros, e estagnação nos outros, barcos, comboios e metro. Ao acontecer este diferencial, temos uma situação em que o número de passageiros aumenta de um lado mas não é escoado do outro, levando a situações de saturação. Mas estas situações têm razões históricas, não são exatamente um caso de má gestão.
Talvez algumas pessoas se lembrem de jogos como o Sim City ou o Cities Skylines, onde podemos criar as nossas próprias cidades e redes de transporte. Nestes jogos, os habitantes das cidades aparecem e desaparecem em determinados pontos porque não seria viável simular toda a realidade de uma cidade num computador, em nossas casas. As redes de transportes na área metropolitana de Lisboa estão neste ponto, onde existiu um avanço significativo numa parte da rede mas não fizemos o mesmo noutras partes da rede, como os barcos, comboios e metro, por isso temos a sensação que os passageiros são despejados algures, na expectativa que simplesmente evaporem.
A Transportes Metropolitanos de Lisboa está agora a fazer um plano para toda a área metropolitana de Lisboa que poderá permitir a análise da rede de transportes como um todo, eliminando estas discrepâncias entre modos de transporte, capacidade de transporte, planeamento de obras e compras e até a previsão de novas ligações ainda não incluídas nas concessões actuais. Este exercício, que vem tarde, é muito bem vindo, por trazer clareza suficiente para anularmos os problemas atuais que vamos sentindo todos os dias, como excesso de passageiros a certas horas do dia em alguns modos de transporte, ou situações em que as travessias do Tejo não têm sequer capacidade na infraestrutura existente. Mas bastará?
A resposta é não. Portugal não compra comboios novos, para nenhum operador público ou privado, há mais de 20 anos. Esta ausência, por opção política, traduz-se na incapacidade de aumentar a oferta, melhorar os tempos de viagem e introduzir novas ligações. Não é propriamente por falta de planos para compra, foram opções ao longo dos anos, nas quais as pessoas votaram, que fizeram com que chegássemos aqui, onde estamos com frotas envelhecidas, que não conseguimos substituir rapidamente nem temos previsão de vir a resolver nenhum destes problemas nos próximos 10 anos.
Também não investimos em bons contratos de concessão, que não têm obrigatoriamente de ser com empresas privadas. Aliás, é benéfico que as empresas públicas tenham os seus contratos de concessão e tudo esteja claro e possível de verificar ao longo do tempo. Mas, sem contratos com regras iguais, ou contratos com a possibilidade de definir ligações, serviços e outros parâmetros ao longo do tempo, não temos a possibilidade de fazer comparações justas nem podemos exigir que se façam investimentos em retorno do que pagamos pelos serviços. Não deveríamos ficar presos à ideia de contratar um serviço e, durante os 30 anos de contrato, este serviço não ser ajustado à realidade, dentro desse mesmo contrato, independentemente do meio de transporte.
Precisamos de desconstruir alguns mitos, como o público versus privado. Trata-se sobretudo de planear e executar o que foi planeado. Não o fazemos, na maioria dos casos, levando a que os problemas surjam mais cedo ou mais tarde. Estas são opções, maioritariamente políticas, e pouco explicadas às pessoas, levando também a uma distância entre a população e o poder de decisão. Também temos de acabar com o mito que o investimento em transportes públicos é despesismo e obrigatoriamente corrupção. Não são! Tudo aponta para um retorno maior quando se investe em transportes públicos, quer do ponto de vista financeiro quer social.
Ao longo dos anos, as opções estratégicas deram prioridade aos automóveis, por isso, tivemos investimentos de milhares de milhões de euros em diversas infraestruturas rodoviárias, inclusive no concelho de Almada, mas este investimento não foi acompanhado por opções iguais nos transportes públicos, onde as infraestruturas são as mesmas desde que foram concluídas as suas obras de construção iniciais. De acordo com um estudo para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, entre 1978 e 2011, os investimentos na rodovia representaram 28,49% do investimento estatal, enquanto que as infraestruturas de transportes apenas 8,91%, em relação aos investimentos totais do Estado.
Esta falta de investimento crónica agrava-se a cada ano que passa uma vez que, quanto mais tempo passamos sem investimentos, menos pessoas especializadas temos — as pessoas vão embora para outros países onde haja trabalho nestas áreas — e menos interesse suscitamos em fornecedores, que passam a olhar-nos como irrelevantes e sem credibilidade. A agravar, já cancelámos investimentos no passado recente, o que nenhum fornecedor vê com bons olhos, uma vez que a apresentação de propostas requer investimento prévio. Imagine que tem de gastar milhares de euros para apresentar uma proposta que o mais provável é nunca ser executada por ninguém e ser até cancelada depois de ter o contrato assinado, é isto que se passa connosco.
Apesar de termos peças soltas de planeamento da rede de transportes, não o transformamos em ações concretas, o que resulta em tudo o que foi exposto. Mas o futuro está nas nossas mãos. Somos nós que fazemos a diferença ao exigir que se comprem veículos, sejam eles quais forem, e somos nós que podemos exigir mais e melhor infraestrutura, trazendo de volta o conhecimento perdido e a vontade de inovar e fazer melhor. Não temos de inventar a roda para fazer melhor, basta-nos olhar para os exemplos dos nossos colegas europeus, com dimensões semelhantes à nossa, e vamos ver a diferença de estratégia, com resultados práticos.
Nota: Esta é uma opinião pessoal e não vincula nenhuma das entidades para quem o autor trabalha.