Apesar da localização privilegiada e das vistas soberbas para Lisboa, na Trafaria a população enfrenta muitas das dificuldades geralmente associadas ao interior do país. O transporte público escasseia, o centro de saúde encerrou, a correspondência demora semanas e, recentemente, o multibanco deixou de funcionar. Pandemia só veio agravar a situação.
“De manhã, há jovens que caminham quase uma hora para apanhar o metro no Monte da Caparica. À tarde vejo pessoas com mais idade a subir a pé para a Corvina, muitas vezes com os sacos das compras, porque quase não há autocarros”, descreve Susana Pereira, residente na Trafaria.
Desde que a Transportes Sul do Tejo (TST) suspendeu parte do serviço rodoviário, na sequência da pandemia de covid-19, que “muita população ficou isolada. É surreal, nunca tinha acontecido”, conta.
“A redução foi drástica”, corrobora João Luís Paixão, pároco na Trafaria. As poucas carreiras que continuam a circular, têm o horário reduzido e “passam apenas a cada duas ou três horas, com muitas falhas. Há pessoas que chegam a demorar três horas a voltar do trabalho”, garante.
A escassez de transporte público é um dos problemas que mais preocupa os residentes na pequena vila da Trafaria, fixada nas margem sul do Tejo, no concelho de Almada. Mas os moradores ouvidos pelo ALMADENSE lamentam a crónica falta de diversos serviços básicos, que a situação de crise pandémica só veio agravar.
Atualmente com horários de serviços mínimos, a viagem de ferry assegura a ligação a Belém, em Lisboa, em cerca de 20 minutos. Antes da pandemia, eram cada vez mais os turistas que atravessavam o Tejo em direção à pitoresca Trafaria, outrora a estância balnear favorita da burguesia portuguesa.
Os vestígios de um passado mais próspero são perceptíveis nas vivendas que ali permanecem, hoje muitas delas abandonadas. Nos últimos anos “assistimos a bastante reabilitação, mas sobretudo destinada a estrangeiros e alojamanto local”, constata Susana Pereira. De resto, o preço das casas na Trafaria foi dos que mais cresceu em toda a margem sul, chegando a níveis que praticamente triplicam o que era praticado há poucos anos.
Apesar de ter visto o turismo crescer, a pequena vila de origem piscatória não sofreu a descaracterização que atingiu outras zonas, conseguindo conservar uma identidade própria. Junto à praia, as pequenas embarcações apenas contrastam com os imponentes silos de moagem da Silopor, que recortam o horizonte. Por isso, insistem os moradores, o principal problema é a falta de serviços.
Não muito longe da zona ribeirinha, abre-se o Largo da República, onde se encontra hoje o único terminal de multibanco disponível 24 horas por dia, que “avaria constantemente”, conta um dos impulsionadores da petição “Por um serviço estável e seguro de multibanco para a Trafaria”, lançada pelo movimento cívico Trafaria Nossa Casa. A plataforma foi criada por um grupo de moradores que tem como objetivo “lutar pela melhoria do território”.
Durante o estado de emergência, houve dias em que para levantar dinheiro ou fazer pagamentos, a população se via obrigada a “apanhar um dos raros autocarros para poder utilizar o multibanco no Monte da Caparica ou na Costa”. Tudo porque no início do ano o terminal da Caixa Geral de Depósitos (CGD) foi retirado e a caixa instalada no interior do terminal fluvial se encontra limitada ao horário da estação. “Precisamos de uma alternativa”, diz João Luís. O pároco tem estado ele próprio a interceder junto da CGD para a reposição de um segundo teminal. “A minha função não é só celebrar missas, interessa-me o bem-estar da população”, argumenta.
Pandemia agrava sensação de isolamento
Apesar da localização privilegiada, da proximidade “às praias mais concorridas do país” e das “vistas soberbas para a capital”, o jovem membro da plataforma Trafaria Nossa Casa constata que a população enfrenta muitas das dificuldades geralmente associados ao interior do país. “Sofremos os problemas da interioridade sem estar no interior”, resume. “Testemunhamos um abandono progressivo. Sentimo-nos esquecidos”, concorda o padre João Luís, para quem a crise pandémica só veio expor uma situação de isolamento que já vinha de trás.
“Vivemos aqui como no campo. Não há futuro na Trafaria”, lamenta o pároco, antes de recordar outra das reivindicações recorrentes, relacionada com o acesso aos cuidados de saúde. Desde que o antigo Centro de Saúde foi encerrado, em 2013, que os utentes se vêm obrigados a depender de transportes públicos para ir às consultas na USF Costa do Mar, na Costa de Caparica.
Depois da revolta inicial, hoje os moradores exigem sobretudo a melhoria do transporte. A ideia de um minibus semelhante ao chamado “Bus Saúde” (que circula no centro de Almada), gera consensos: “dessa forma resolvia-se o problema da população mais idosa”, argumenta Susana Pereira.
No entanto, “há muitos anos que a Trafaria está totalmente esquecida pelas autoridades em geral” lamenta a trafariense, apontando ainda o serviço postal como outro dos problemas: “chega a demorar várias semanas”, lamenta.
Tanto a União de Freguesias de Caparica e Trafaria (PCP) como a Câmara Municipal de Almada (PS), são aludidas por “não olharem para a Trafaria nem apresentarem soluções” à população, afirma João Luís Paixão. “Queremos que a Junta reaja e que faça valer as necessidades dos residentes”, dizem, por sua vez, no movimento Trafaria Nossa Casa. “Se estão a fazer algo para resolver estas situações, não o comunicam à população”, lamentam. Contactada pelo ALMADENSE, a União de Freguesias da Caparica e Trafaria não se mostrou disponível para prestar declarações.
Ainda assim, apesar das dificuldades, o orgulho na autenticidade do território permanece. “A Trafaria não cresceu de forma desordenada como outras zonas do concelho, por isso mantém o grande potencial”, assinala Susana Pereira. “Podia ser uma zona muito boa se houvesse mais investimento público. Só é pena ninguém se interessar por nós”, remata a trafariense.
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