Instituto da Habitação deu até dia 10 de julho para dezenas de famílias desocuparem as casas onde residem em bairro autoconstruído no Pragal. Embora não haja qualquer plano de realojamento, demolições avançam “durante o Verão”, diz o IHRU, proprietário dos terrenos. “Não temos para onde ir”, garantem moradores.
Quem passa na rua dos Três Vales, junto à estação ferroviária do Pragal, em Almada, dificilmente imagina que por trás da vegetação e dos arbustos se ergue um bairro de génese informal onde vivem atualmente mais de 400 pessoas.
Transposta a primeira cerca que separa a estrada deste bairro autoconstruído em Penajóia, avista-se o monumento do Cristo Rei, o Hospital Garcia de Orta e também a horta de Paulo Sanches. Milho, feijão, batata doce, goiaba e até bananeiras integram o cultivo do cabo-verdiano de 55 anos. Construiu a sua casa no bairro de Penajóia há 14 anos. Na altura “estava desempregado e não conseguia pagar uma renda”, conta ao ALMADENSE.
As paredes são de madeira e o telhado de chapa. Com os anos, foi melhorando a habitação onde reside com a mulher e os dois filho, tendo recentemente colocado um teto falso na sala. Agora, para além da dedicação à horta, trabalha com sucata e vai fazendo biscates. Mas continua a não conseguir a quantia suficiente para conseguir um arrendamento a preços de mercado.
Hoje, é um dos moradores mais antigos do bairro informal de Penajóia, que cresceu sobretudo nos últimos dois anos. “Foi depois da pandemia, por volta de 2022 que começaram a vir mais pessoas, nos últimos meses foram construídas muitas casas”, relata.

As construções iniciais de madeira foram dando lugar, nos últimos meses, a habitações de alvenaria, à medida que o bairro de génese ilegal se foi expandindo a um ritmo cada vez mais acelerado.
Até que, a 12 de junho, um edital afixado pelo bairro pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), proprietário dos terrenos, provocou o sobressalto junto dos moradores.
“Os eventuais interessados que tenham, sem a devida autorização do IHRU, no terreno, construções, bens, produtos ou resíduos deverão removê-los até ao referido dia 10 de julho de 2024”, lê-se no edital espalhado pelas casas. “A sua manutenção irá ser entendida como uma declaração inequívoca de que aqueles não têm dono ou de que estão abandonados, tendo o IHRU o direito de lhe dar o destino mais apropriado em função da sua natureza e da preservação ou reposição da legalidade e das necessárias condições de salubridade e segurança”.
De momento, o edital fez paralisar as novas construções, mas deixou quem já vivia no bairro sob tensão. “Sabemos que o terreno não é nosso, mas foi aqui que criámos o nosso espaço”, admite Paulo Sanches.
Apesar das condições precárias, gosta da tranquilidade da zona e do espírito de entreajuda entre a vizinhança. “Prefiro estar na minha barraca. Gostava de continuar aqui até ao fim da vida”, confessa. Além disso, “não tenho outro sítio para onde ir”, afirma, lamentando que o IHRU, de resto, a entidade pública promotora da política nacional de habitação, não dê solução.
Crise habitacional provoca crescimento do bairro

Foi a crise da habitação que empurrou Manuela e Elisângela a virem viver para Penajóia. “Ninguém gosta de viver assim. Mas não tivemos alternativa, não temos meios para pagar uma casa”, diz Elisângela, mãe de três filhos, e residente no bairro há três anos.
“O que ganhamos é menos do que o valor da renda”, diz Manuela, doente oncológica, que veio para o bairro há cerca de cinco meses. “Andei à procura de quarto, mas não encontrei nada que pudesse pagar. Por isso vim para cá”.
Na tarde em que o ALMADENSE visitou Penajóia, tinham acabado de se juntar com o vizinho Nelson para conversar sobre a iminente demolição das suas casas. “Não temos para onde ir. Vimos o edital, mas ninguém do IHRU falou connosco, por isso não sabemos o que vai acontecer”, diz Elisângela. “Já tentámos pedir informações, mas não tivemos resposta nenhuma por parte do IHRU”.
“Se tivéssemos casa, não ficávamos aqui. Ninguém gosta de viver assim”, refere Manuela. “Eu gostava de ter uma boa casa, mas a vida não permite”, lamenta. Foi ela própria que fez a sua “barraca” de condições precárias, com a ajuda dos vizinhos, conta. “No inverno passamos frio e chove cá dentro”. No exterior, acumulam-se eletrodomésticos velhos, pedaços de madeira, ferro, sucata e entulho.
Na sua grande maioria naturais de Cabo Verde, criaram aqui uma comunidade que se ajuda mutuamente. No entanto, as dificuldades com que se deparam ao chegar a Portugal, em especial no que toca à habitação, fazem-nos temer pelo futuro. “Viemos à procura de uma vida melhor, mas estamos pior”, admite a moradora.

Com o despejo a aproximar-se, o desespero começa a apoderar-se dos residentes no bairro. “Se não nos derem solução, ficamos na rua”, diz Manuela, uma das moradoras que se deslocou à Assembleia Municipal de Almada no passado dia 27 de junho para pedir um plano de realojamento e apelar à intervenção das autoridades.
Segundo um comunicado emitido por algumas associações e coletivos solidários com os moradores, no bairro residem atualmente cerca de 160 agregados familiares, entre as quais 60 crianças, seis bebés recém-nascidos e mais de vinte pessoas idosas, doentes crónicos e mulheres grávidas. Falam em 350 pessoas, mas alguns moradores garantem que são muito mais.
Já o IHRU, numa resposta enviada por escrito ao ALMADENSE, não avança um número concreto para os agregados residentes. “O número exato de famílias não é possível de apurar, uma vez que existe um fenómeno de mobilidade que impede essa correta contabilização. Percebe-se, contudo, que o número de famílias pode ascender a algumas dezenas”, indica a entidade.
Questionado sobre quando serão levadas a cabo as demolições, o IHRU indica que “não está ainda definida a data de arranque dos trabalhos,” mas avança que conta que “sejam realizados durante o verão”.
Sem invocar qualquer qualquer plano de realojamento para as famílias em causa, a mesma fonte indica apenas que “as entidades com responsabilidades na matéria terão de assegurar a existência de solução habitacional para as famílias, caso estas demonstrem não ter efetivamente alternativa”. O IHRU não especificou, contudo, a que entidades se refere.
Sobre o destino a dar aos terrenos, será “compatível com a sua afetação prevista no Plano Diretor Municipal que se encontra em revisão, sendo que alguns não têm aptidão habitacional”, esclarece ainda o Instituto.
Autarquia não se responsabiliza por soluções definitivas

Em resposta às intervenções dos moradores, a presidente da Câmara de Almada, Inês de Medeiros, sublinhou que se trata de um caso de construção ilegal num terreno que não pertence à autarquia. “Vamos transmitir as vossas palavras, mas é bom que se perceba que é uma matéria exclusivamente da responsabilidade do Instituto Nacional para Reabilitação e Habitação Urbana”, afirmou, acrescentando ter alertado diversas vezes a entidade para a situação.
De acordo com a presidente da autarquia, se o instituto tivesse agido mais cedo, a situação não seria agora tão preocupante. “O IHRU não só tem responsabilidades como proprietário, como tem responsabilidades até estatutariamente, uma vez que é essa também a sua missão enquanto entidade pública. A Câmara, ao nível da habitação, está a fazer o seu trabalho. Cada uma das entidades tem de assumir as suas responsabilidades, porque o problema da habitação é um problema maior e isto não se resolve dando parte ausente de um problema que está a acontecer. O proprietário do terreno devia ter agido de imediato, falando com os moradores desde o primeiro momento”, disse Inês de Medeiros.
Por sua vez, a vereadora com o pelouro da Fiscalização Municipal, Francisca Parreira, indicou na mesma Assembleia que a autarquia avisou o IHRU sobre a existência de construções no terreno. “Quero dar nota que a primeira notificação enviada data de 15 de junho de 2023, a segunda de 15 de julho de 2023, a terceira de 30 de outubro, a quarta de 21 de novembro e a subsequentes em 2024. O que quer dizer que a Câmara Municipal manteve presença no território agindo e responsabilizando o IHRU para faça o que lhe cumpre. Ninguém ficará para trás, mas o IHRU tem de assumir a sua responsabilidade inteira”, referiu.

Já na última reunião de Câmara, que decorreu esta segunda-feira, dia 1 de julho, Francisca Parreira voltou a frisar que “esta é uma questão que compete ao IHRU porque é dono e proprietário destas parcelas”. De acordo com a autarca, “o município irá acompanhando, mas não se responsabilizará por encontrar soluções definitivas para estas pessoas no bairro da Penajóia porque essa responsabilidade é de uma entidade pública, que tem um orçamento maior e cuja missão é precisamente na área da habitação pública. Portanto, nunca o município terá aqui a ideia de se substituir a quem tem responsabilidades no âmbito deste processo, que é o próprio IHRU”.
Por sua vez, o Bloco de Esquerda, enviou questões ao Ministério das Infraestruturas e Habitação sobre esta matéria, com o intuito de saber que medidas estão “previstas para assegurar que todas as pessoas afetadas terão alternativas habitacionais dignas após o processo de demolição”.
Admitindo que este bairro “é responsabilidade do IHRU”, a vereadora na Câmara de Almada, Joana Mortágua mostrou preocupação com a “crise habitacional que causa a expansão deste tipo de habitação clandestina”, argumentando que o facto de “não haver acesso a habitação no mercado formal, fomenta o crescimento de “respostas que não são as desejáveis” e defendendo que “não se retirem respostas de habitação informal sem que haja alternativa porque a alternativa não pode ser as pessoas irem morar para o olho da rua e, com isso, agravar os dramas sociais que já atravessamos”.
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