Há cinco meses na presidência do Conselho de Administração do Hospital Garcia de Orta (HGO), que serve a população de Almada e Seixal, Teresa Machado Luciano assume como principal desafio a retenção dos profissionais, admitindo que a carência de médicos se manifesta especialmente nos serviços de ortopedia, obstetrícia-ginecologia, urologia e anestesia. Em entrevista ao ALMADENSE, a farmacêutica anuncia para breve obras nas três urgências e ainda um aumento dos recursos para atendimento aos pacientes com doença mental.
Como encara assumir o cargo de presidente do Conselho de Administração (CA) num momento tão sensível para o SNS?
Aceitámos este desafio há cerca de cinco meses porque acreditamos no HGO e no SNS. Acreditamos que podemos fazer a diferença. No entanto, não é o CA que faz a diferença: é o CA e os seus profissionais. As instituições não são as paredes, são as pessoas. E, como acreditamos nas pessoas, aceitámos este desafio para servir a população, que é a razão da nossa existência: os utentes da região de Almada e Seixal, a península de Setúbal e até o Algarve no que toca à medicina nuclear. É com muito empenho que aceitamos este grande desafio.
Quais são atualmente os maiores desafios para o HGO?
O principal desafio é reter os talentos, as equipas. O HGO tem uma história de 31 anos, com profissionais excelentes. Fazem-se aqui técnicas de excelência em muitas áreas. Apesar disso, muitas vezes acabamos por aparecer nas notícias devido à situação nas urgências. Mas os hospitais não são só as urgências. São o trabalho diário de consultas, são as cirurgias e os tratamentos dos nossos utentes. No HGO temos também Centros de Responsabilidade Integrada [CRIs] em quatro especialidades: otorrinolaringologia, oftalmologia, medicina nuclear e dermatologia. Temos quatro CRIs e queremos construir mais noutras áreas específicas, como obstetrícia-ginecologia, gastroenterologia e outras.
Hoje em dia o hospital tem os médicos que precisa?
Queremos sempre mais. E não só médicos, mas também outros profissionais. Neste momento, o HGO tem cerca de 3300 colaboradores, o que inclui 2977 pessoas contratadas no mapa de pessoal, 72 em contratos a termo e prestadores de serviços. Os profissionais que trabalham no HGO são o pilar da instituição e fazem todos os dias um grande trabalho. Recebemos muitos elogios dos doentes, o que é muito gratificante para os profissionais. Os utentes reconhecem o trabalho feito.
De que forma pretendem reter os profissionais, de maneira a contrariar a saída de recursos humanos?
Esperamos poder integrar colaboradores através do Centro Garcia de Orta, que investe em formação, inovação e investigação. São três áreas muito importantes não só para os profissionais, mas também para os utentes (pois podemos dar novas medicações e usar novas tecnologias) e para toda a instituição, que assim cresce. Também estamos envolvidos em dois projetos europeus com componentes científicas e de investigação, contribuindo para a motivação e retenção dos profissionais. Por outro lado, oferecemos condições privilegiadas a doutorados (médicos, enfermeiros e farmacêuticos) do hospital, incluindo um aumento salarial equivalente a uma posição contratual, de acordo com a legislação publicada no passado mês de julho.
Mas além desses incentivos, seria necessário ir mais além na valorização salarial dos médicos e restantes profissionais…
É uma matéria que a tutela está a tratar. São públicas as negociações com os sindicatos em relação às carreiras. O assunto das carreiras dos médicos esteve algum tempo parado. Por um lado, tem de ser revisto e, por outro, têm que se abrir os concursos para as pessoas poderem ingressar e crescer na carreira.
Mas gostaria de frisar que a 2 de janeiro de 2023 entraram para a nossa instituição 76 novos médicos internos, 34 dos quais de formação específica de 25 especialidades e 42 da formação geral. Realizámos um programa de integração geral durante três dias e esperamos cativá-los para que escolham o HGO como a sua especialidade para 2024. Por outro lado, de referir também que existe a nova carreira de especialidade de residência farmacêutica, na qual integrámos três novos internos.
Há especialidades em que precisamos de reforço de médicos, nomeadamente urologia, ortopedia, ginecologia-obstetrícia e anestesia.
Em que serviço é atualmente mais difícil reter os profissionais?
A obstetrícia-ginecologia. Nesse sentido, temos um plano com a península [de Setúbal], que nos permite receber apoio dos internos do Hospital do Barreiro (três chegaram recentemente ao HGO para ajudar com escalas). A nossa perspetiva é de conseguir crescer e ter mais profissionais, sobretudo tendo em conta a diversidade das tarefas do serviço.
Como avalia a recente implementação do sistema rotativo de funcionamento para o serviço de obstetrícia-ginecologia?
Atualmente, a avaliação está a ser semanal e posso dizer que está a correr bem. Somos um hospital diferenciado em termos de neonatologia, o que significa que quando uma mulher grávida precisa de neonatologia é encaminhada para o HGO. A título de exemplo, ontem realizámos 67 atendimentos na urgência de obstetrícia e ginecologia e nasceram nove crianças. E também ontem registámos 132 atendimentos na urgência de pediatria.
Que outras especialidade enfrentam dificuldades?
Também temos algumas dificuldades na ortopedia. É uma área em que necessitamos de mais profissionais. Nesse sentido, está já prevista a elaboração, até ao final do mês, de um plano, em articulação com a península de Setúbal, no sentido de estabelecer uma rede e criar soluções para aumentar as respostas aos utentes. Para além da ginecologia-obstetrícia e da ortopedia, as especialidades em que precisamos de reforço são urologia e anestesia.
E como avalia a recente alteração que permite aos hospitais contratar diretamente?
Considero que é uma medida muito benéfica, que terá um impacto muito positivo nos hospitais. Em concreto no HGO, e a título de exemplo, temos seis especialistas que ficaram connosco diretamente após terminarem o internato. Também foi anunciado a nível nacional que os recém-formados, que antes demorávamos muito tempo a conseguir contratar, podem agora ser contratados diretamente. Esta medida —da direção executiva do SNS, sob liderança do professor Fernando Araújo— é, sem dúvida, uma mais-valia.
As urgências estão ao nível dos números pré-pandemia. Em novembro realizámos 270 atendimentos em apenas um dia.
Janeiro é geralmente um mês complicado no serviço de urgência. Continuam as dificuldade em preencher as escalas?
No ano de 2022 registámos cerca de 150 mil urgências em 2022 em pediatria, obstetrícia-ginecologia e urgência geral, ou seja, números de urgências semelhantes aos pré-pandemia. Em termos de escalas, começámos agora em janeiro com uma equipa fixa na urgência (com três pessoas fixas durante o dia), para atender os doentes internados na urgência. A outra equipa dá resposta aos pacientes com pulseira verde e azul. Está a correr bem. Mas a urgência é sempre uma situação muito, muito difícil, uma vez que recebemos todos os dias muitos utentes.
Qual é atualmente o número de atendimentos nos três tipos de urgências?
Cerca de 400 atendimentos por dia, no conjunto das três urgências. A urgência geral regista cerca de 200 atendimentos, mas já tivemos 300 em alturas complicadas.
E qual o número de médicos que costuma estar nas urgências? É suficiente?
Não tenho números concretos, mas posso adiantar que as urgências estão ao nível dos números pré-pandemia. De referir que em novembro, durante o pico de procura do serviço de urgência, em apenas um dia realizámos 270 atendimentos, dos quais mais de 60% eram utentes com pulseira verde e azul, ou seja, situações não urgentes. Por isso, queríamos destacar a importância da literacia em saúde. Se uma pessoa tiver dor de cabeça ou espirrar, não deve ir às urgências, porque pode estar a tirar lugar às pessoas que mais precisam. Devem procurar o serviço de urgência quando é realmente urgente. Nesse sentido, temos o projeto “Verde e Azul”, em cooperação com Setúbal, para efetivar a triagem entre doentes urgentes e ligeiros, que serão encaminhados para os centros de saúde.
Os centros de saúde estão preparados para esses atendimentos? Há mais de 50 mil utentes sem médico de família em Almada e Seixal…
Temos 50 vagas diárias nas unidades só para doentes triados com pulseira verde e azul. Sabemos de onde vêm mais doentes e as unidades desses locais têm mais vagas. Portanto, quando um utente verde chega à urgência e é encaminhado para a sua unidade de saúde, onde já tem uma consulta marcada para o próprio dia. Se as pessoas não utilizarem estas vagas, as mesmas são atribuídas a doentes do dia. Outra possibilidade é o utente ligar para o SNS 24, pois muitas situações não requerem sair de casa.
O HGO continua a ter necessidade de recorrer aos privados, como aconteceu durante a pandemia?
Isso acontece sobretudo na rede de cuidados continuados. Por exemplo, um doente é operado ao fémur e tem alta, mas precisa de recuperação e fisioterapia. Este doente pode ir para uma unidade de cuidados continuados de convalescença de média ou longa duração, libertando uma cama de hospital para outro utente que dela necessite. A equipa sinaliza os utentes da rede de cuidados continuados, cabendo à ARS a contratualização de camas muitas das quais em instituições privadas. Temos, por exemplo, 25 camas contratualizadas nas residências do Montepio do Montijo, que nos permitem libertar camas e aumentar o número de cirurgias realizadas. Por outro lado, também realizamos reuniões com a Segurança Social para encontrar respostas para os casos sociais, encaminhando-os para as ERPI.
No que respeita a cirurgias, não temos recorrido a instituições privadas. Existem programas pontuais, mas não é de forma concertada como foi na altura da covid-19, quando se verificava uma limitação por existirem blocos operatórios dedicados à covid.
Vamos aumentar o internamento de psiquiatria com mais oito camas. Neste momento temos 27 camas e vamos crescer para um total de 35.
A saúde mental tem ganho maior visibilidade nos últimos anos. Prevê o HGO reforçar o investimento nesta área?
A saúde mental é importantíssima. Também para a saúde mental o HGO criou um plano e atuou prontamente. Temos um projeto para a criação de um Hospital de Dia de Psiquiatria na Comunidade e vamos também implementar dois outros hospitais de dia: em Almada e no Seixal. No Seixal já está aprovado o local, assinado o protocolo e o projeto está em andamento na Cruz de Pau, na antiga Clínica Oceanos. Em Almada está prevista a remodelação das lojas Alfazina para a criação do Hospital de Dia, para o qual a Câmara Municipal cedeu o espaço.
Quando vai abrir o hospital de dia em Alfazina?
Ainda não temos data. Mas o PRR tem datas específicas de execução e vamos ter de cumprir para podermos aproveitar os fundos. Para além disto, vamos aumentar o internamento de psiquiatria no hospital com mais oito camas. Neste momento temos 27 camas e vamos crescer para um total de 35. Também vamos criar mais gabinetes de consulta. O investimento total é 2,3 milhões e, para o HGO, é cerca de um milhão e meio. De referir ainda que temos a pedopsiquiatria na Cova da Piedade, em instalações que também tiveram obras recentemente.
Além disso, e porque no serviço de urgência recebemos todos os dias muitos doentes da psiquiatria, vamos fazer obras e criar uma Sala de Observação para psiquiatria, de forma a separar a urgência de psiquiatria da geral. Portando, queremos crescer para receber mais utentes e trabalhar de forma mais articulada.
Está também previsto ainda para este ano o inicio de obras na urgência geral com vista a melhorar as instalações para os profissionais e para os utentes. Todas as obras são de contratação pública, pelo que implicam a abertura de concurso, e prazos de entrega, mas irão começar este ano.
Qual será o investimento?
A obra na urgência de psiquiatria representa um investimento de 30 mil euros. As obras na urgência geral ainda estão a ser orçamentadas.
O HGO apresentou há cerca de dois anos um plano de expansão. Já foi aprovado pelo Governo?
Foi realizado um “Plano Funcional” para intervenções nas três urgências: pediatria, obstetrícia e urgência geral, pelo que terá ser aberto concurso para a obra de intervenção ao nível das três urgências. Além disso, a ideia seria aumentar ainda mais a capacidade ao nível dos Cuidados Intensivos. Para o novo edifício de ambulatório, aguardamos abertura do procedimento de concurso para a realização do “Plano Funcional”. Mas importa perceber previamente se a dimensão do que se tinha pensado responde às necessidades atuais ou se é preciso aumentar o projeto para incluir outras valências como a consulta do sono ou a dermatologia. Trata-se de um grande projeto e com um valor de investimento elevado, pelo que deve ser cuidadosamente estudado.
Qual o ponto de situação em relação ao ataque informático de que o hospital foi alvo em abril de 2022?
Está tudo resolvido. Temos implementadas as recomendações do Centro Nacional de Cibersegurança, com o objetivo de reduzir de forma significativa o risco de sofrer um ataque como aquele a que fomos sujeitos.
Ainda está a afetar o funcionamento do hospital?
Neste momento está tudo regularizado. Nunca deixámos de funcionar mas, numa fase inicial, não conseguíamos ter acesso aos backups. De destacar que, no início do ataque, foram os profissionais mais experientes que deram um apoio gigante neste processo e orientaram os colegas mais jovens, que nunca tinham passado uma receita em papel.
Fotografia: Bruno Marreiros
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