O tamanho total do fóssil não chega aos sete milímetros e está parcialmente escondido numa rocha, mas o trabalho minucioso permitiu identificar uma nova espécie que junta o nome de uma deusa ao de uma constelação. A nova espécie faz recuar o aparecimento deste grupo de animais 40 milhões de anos.
Depois de alguns anos a investigar um dente molar de um animal que se poderia assemelhar a um rato e vários meses até conseguir publicar o artigo científico, Sofia Patrocínio “encerrou” este ciclo na sexta-feira, 13 de junho de 2025. O resultado apresentado na revista científica Papers in Palaeontology não deve nada ao azar, mas tem a sua quota parte de incidentes, como contou a paleontóloga ao ALMADENSE.
“Há uma história engraçada no secundário: tive de fazer um trabalho sobre paleontologia e tirei uma nota negativa; fiquei tão revoltada que disse que não voltaria a acontecer”, conta numa conversa descontraída, ao mesmo tempo que admite que adora aquilo que faz. E faz muitas coisas, ainda que muitas delas não sejam sequer pagas. “A paleontologia não é vista como uma profissão a sério.” Algo que está determinada a contrariar.
Sofia Patrocínio é do Cartaxo e formou-se em Educação Ambiental e Turismo de Natureza. Já lá vão mais de meia dúzia de anos desde que entrou no curso, mas o preço do alojamento para estudantes noutras paragens era incomportável (na altura, como agora) e foi uma das condições que a obrigou a ficar mais perto de casa e ingressar no Instituto Politécnico de Santarém. Depois disso, fez estágio no Dino Parque da Lourinhã e por lá ficou a trabalhar.

“Foram eles [os colegas do Dino Parque] que me incentivaram a fazer o mestrado em Paleontologia da Nova; disseram que tinha jeito”, conta, referindo-se ao curso da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Lisboa (Nova FCT), que tem um campus na freguesia da Caparica, Almada.
Numa das cadeiras do mestrado, Paleontologia de Vertebrados, Sofia Patrocínio e os colegas foram desafiados a preparar e descrever fósseis, alguns deles da coleção do Museu da Lourinhã, alguns destes resultado de uma escavação na Gronelândia. A então aluna do mestrado, trabalhou com agulhas e microscópio para retirar os sedimentos que ainda estavam agarrados ao fóssil que não tinha sequer sete milímetros – mesmo assim, não conseguiu libertar toda a peça como veremos.
Depois, descreveu detalhadamente o fóssil e tentou identificar a que grupo pertencia e quais as relações filogenéticas com outros grupos de animais – ou seja, tentou encaixar este animal no devido patamar da árvore da vida. “Tinha semelhanças com vários grupos, mas não parecia pertencer a nenhum. O mais provável era que fosse uma espécie nova”, diz a investigadora. “Tinha tanto material de estudo que dava para continuar [com o mesmo tema] para mestrado.”
Como é que um dente permite identificar uma nova espécie?
O primeiro passo foi incluir a espécie no ordem Docodonta, um grupo de mamaliformes – antecessores dos mamíferos na linhagem evolutiva – com molares muito distintos. Numa explicação bastante simplificada: os molares eram compridos e baixos e com um padrão de cúspides característico. (As cúspides são as saliências cónicas nos molares, que nós também temos.) Mas aquele dente em particular tinha características que não encaixavam em nenhum dos géneros ou espécies já conhecidos dentro dos docodontes.
Os fósseis de docodontes são muito raros, mas existem fósseis com mandíbulas inteiras, o que permitiu a comparação com o material que tinha, assim como descartar que se tratasse de um dente com um pequeno defeito. “Se fosse só uma alteração na morfologia do dente, podia haver dúvidas, mas contei cinco a sete diferenças”, explica Sofia Patrocínio. Entre estas diferenças, uma cúspide virada para o lado da língua.

Se o padrão original do dente permitiu classificá-lo como uma nova espécie, a camada em que foi encontrado traz outra novidade. Para determinar a idade dos fósseis, os paleontólogos “medem” a idade das rochas encontradas na mesma camada. Neste caso, o fóssil ter-se-á formado há cerca de 200 milhões de anos, na transição entre o período Triássico e o Jurássico (o período em que surgiu uma grande diversidade de dinossauros que facilmente reconhecemos). Mais interessante ainda, é que esta espécie terá surgido 40 milhões de anos antes da mais antiga espécie de docodonte conhecida até então.
Uma nova espécie na transição entre os mamaliformes anteriores aos docodontes e os docodontes traz mais uma peça ao puzzle da evolução dos mamíferos, em particular da ordem Docodonta que se diversificou e ocupou vários ambientes ao mesmo tempo que os grandes dinossauros povoavam a Terra. Mais, este fóssil colocava a origem dos docodontes na Gronelândia e Europa – ligadas antes de os continentes se separarem para as posições que agora ocupam –, em vez da Rússia e Ásia como anteriormente se pensava.
As camadas de solo onde se encontram os fósseis, são como prateleiras numa estante em que cada uma corresponde a um período de tempo. Explorando cada prateleira como quem lê os livros que ali estão arrumados, os cientistas conseguiram datar a camada e os fósseis – entre eles uma nova espécie de dinossauro, Plateosaurus trossingensis, identificada por um colega de mestrado de Sofia –, mas também descrever aquele ambiente. Os fósseis foram encontrados num antigo lago, com pouco oxigénio na água e que servia de local de passagem para muitos animais.

Um dente de deusa com nome de constelação
Agora com 25 anos, Sofia Patrocínio ostenta no currículo a identificação de uma nova espécie. “É estranho; parece que ainda não caí em mim.” Quem descobre uma nova espécie pode dar-lhe um nome, seguindo naturalmente as regras utilizadas pela comunidade científica. A espécie tem sempre dois nomes em latim (primeiro o nome do género, que funciona quase como os nossos apelidos, e depois o “nome próprio” que traz a característica distintiva), como definiu o cientista Carlos Lineu em meados do século XVIII.
Este novo docodonte ficou com o nome de Nujalikodon cassiopeiae. Nujalik é a deusa da caça na terra na mitologia inuite – população indígena das regiões árticas do Canadá, Alasca e Gronelândia – e “nujalikodon” é o “dente de Nujalik”. Já o epíteto específico cassiopeiae deve o seu nome à constelação de Cassiopeia, cujo conjunto de cinco estrelas parece formar um W, tal como as cúspides do molar que Sofia Patrocínio estudou.

Nomear a espécie exige todo o trabalho prévio de estudo fóssil, neste caso de um molar completo, o pedaço de osso onde se encaixava o dente e raízes partidas de um segundo dente. Mas uma boa parte do fóssil não estava visível, ainda estava presa dentro da rocha e retirá-la poderia danificar irreparavelmente o dente. Além disso, era extremamente pequeno, o molar só media dois milímetros. Por isso, era preciso fazer um scan do fóssil – uma espécie de TAC para coisas muito pequenas –, algo que foi muito difícil de conseguir, conta a investigadora. “Mas sem o scan, não era possível avançar, nem submeter o artigo para publicação.” Depois, com as 831 fotografias do scan – como se o fóssil tivesse sido cortado em fatias muito finas –, criou-se o modelo tridimensional no computador, que permitiu ver os pormenores que a rocha escondia.
O trabalho de Sofia Patrocínio foi apoiado pelos seus orientadores, Vicente Crespo, paleontólogo da Nova FCT, e Elsa Panciroli, investigadora do Museu Nacional da Escócia, e contou com a colaboração de outros investigadores. O trabalho foi financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, no âmbito do projeto GeoBioTec.
Finalizada esta etapa, a paleontóloga espera dar continuidade ao estudo da evolução dos ancestrais dos mamíferos com um doutoramento no Instittuto Superior Técnico da Universidade de Lisboa. Desta vez, para estudar o ouvido interno – mas vai continuar a observar ossos e estruturas muito pequenas. Enquanto isso não acontece, vai participando em escavações paleontológicas, colabora com uma base de dados fósseis em Portugal e, nas actividades que realiza para o Ciência Viva, tenta despertar o interesse das crianças pela paleontologia.
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