Teresa Ribeiro, fotógrafa e Amiga do Ginjal, elemento do Colectivo de Artistas do Gira Ginjal
O Ginjal que conhecemos morreu. Falar do Ginjal traz dor ainda, o choque da perda e saudade, a incredulidade perante o desaparecimento súbito do que parecia eterno: os sons, os cheiros, as vidas que se cruzavam.
O Ginjal é mais do que um cais, é um marco vivo na margem sul do rio Tejo. Durante vários séculos e em especial nas últimas décadas do século passado foi um espaço efervescente, com intensa actividade económica, comercial e industrial. Os primeiros armazéns reportam ao séc. XVI, tendo havido no séc. XVIII uma forte implantação industrial, com apogeu no alvor do séc. XIX, em que fábricas e armazéns alinhavam-se lado a lado com cais de descarga, oficinas e pequenas embarcações que ligavam Almada a Lisboa, transportando mercadorias, trabalhadores e histórias. Era um lugar de labuta, de vida dura, mas pulsante, que tocou gerações e deixou marcas importantes e significativas na arquitectura e no espírito do lugar.
Com o declínio da actividade comercial e industrial e a mudança dos tempos, o Ginjal entrou num longo período de abandono e degradação. Os edifícios esvaziaram-se e os últimos moradores saíram em 2015.
Contudo, permaneceu um cenário nostálgico, numa decadência poética: o rio e a dança das suas águas, o pôr-do-sol, a ponte, paredes ávidas de grafites, um encanto permanente, um refúgio para quem procurava vistas únicas da capital, um circuito alternativo para fotógrafos, turistas e locais
Nos anos 80 e 90, coexistindo com os últimos moradores do Ginjal, já em pleno estado de degradação e abandono, o Ginjal é ocupado por pessoas de várias nacionalidades e etnias que introduzem, até à sua saída, uma nova vida no local, uma cultura muito específica e singular, de uma riqueza extrema, fazendo renascer paredes das ruínas.

Chegaram pela necessidade de casa, porque os necessitados aproximam-se de outros necessitados, porque fica mais fácil vencer a aspereza da vida se estivermos acompanhados, a interajuda é a base, a companhia é vital e a celebração pela música e pela partilha são sagradas e asseguram vínculos essenciais.
O tempo passa e esta comunidade, de início pequena, cria raízes e incrementa uma nova dinâmica no Lugar. Um espaço de passagem e permanência, de encontros efémeros e raízes inesperadas, onde o tempo não se conta em relógios, mas em memórias que se entranhavam nas tábuas do chão e nas pedras dos caminhos.
No Ginjal viveram, ao longo dos últimos anos, muitas pessoas. Rostos diversos, vidas entrelaçadas, histórias deixadas nas paredes gastas pelo tempo e pelo sal do Tejo. Algumas chegaram para ficar, fazendo dali morada, refúgio ou recomeço. Outras, incontáveis, apenas passaram, viajantes de alma ou artistas em busca de abrigo temporário, deixando a sua marca indelével.
Os anos decorreram e a falta de manutenção das estruturas edificadas e os invernos cada vez mais ríspidos expuseram várias fragilidades, os buracos na travessia ao longo do Cais do Ginjal eram cada vez maiores e punham em risco a vida e a segurança das pessoas. Cresceram as reclamações e participações de várias pessoas, a comunicação social aproveitou-se destas mazelas e o Ginjal ficou debaixo de mira, sem sossego.

Alvo inescapável de vistorias e análises, a 3 de Abril de 2025, o Cais do Ginjal, por decisão da Protecção Civil, foi interditado por razões de segurança. Fissuras profundas, pisos instáveis, tectos em risco de colapso, a instabilidade das arribas, um traçado urbano demasiado frágil para suportar o fluxo de visitantes foram algumas das razões apontadas pelas autoridades. A decisão não foi tomada de ânimo leve, mas impôs-se como medida necessária para evitar o pior, disseram.
Onde antes se ouvia o murmúrio do rio misturado com passos ora apressados ora contemplativos, passou a reinar o silêncio imposto por portões e avisos de perigo.
O Ginjal viveu dias difíceis. Em vão, as pessoas desorientadas procuravam solução alternativa que lhes salvasse o futuro.
O que iria acontecer de seguida?
O silêncio chegou com uma urgência dolorosa e a 10 de Abril, cerca de cinquenta moradores foram desalojados, vítimas directas da degradação que há muitos anos se arrastava sem resolução. Famílias que resistiram à erosão do tempo e ao abandono oficial, passaram a viver numa incerteza ainda maior — sem casa, sem garantias, sem prazos.
Há momentos em que a vida é atravessada por uma força que não escuta, não pergunta, não hesita, apenas impõe. A lei, fria e surda, passou como um rolo compressor sobre aquilo que foi construído com calor humano. É assim, de um dia para o outro, tudo é varrido sem piedade. Desaparecem as casas, não só as de tijolo, mas as de afecto, de memória, de convivência.
O que se viveu em comunidade, os gestos simples do dia-a-dia, a partilha da mesa, de bens e de pertences, o som de crianças, o eco do passado, tudo isso se desfez, silenciado pela saída.
A 31 de Julho, conforme anunciado pela Câmara de Almada dá-se a reabertura do Cais do Ginjal. É bom e louvável poder-se voltar á proximidade do rio. O caminho reaberto permite voltar à fruição espectacular da zona e Lisboa pode novamente ser amada desta margem.
Mas é uma reabertura amputada e o que sentimos é ambíguo.

Por um lado, a alegria de poder voltar mas o impedimento de pisar o solo que albergou tanta riqueza humana e diversidade de realidades e vivências é desolador e perturbador.
Há muros construídos que não se podem passar. O que era chão vivo foi demolido. Levantaram grades, instalaram barreiras e a poeira ainda paira e risca a garganta.
O Ginjal que conhecemos morreu. Falar do Ginjal traz dor ainda, o choque da perda e saudade, a incredulidade perante o desaparecimento súbito do que parecia eterno: os sons, os cheiros, as vidas que se cruzavam.
O vazio permanece para os que viveram lá e para os que de uma forma ou de outra, conheceram o Ginjal.
Do aglomerado do casario habitado, destacou-se o Gira Ginjal, espaço de portas abertas para o mundo e que ocupava as notáveis instalações dos armazéns de vinho dos Teotónio Pereira, depois sede transitória do Clube Naútico de Almada.
No Gira Ginjal havia quem buscasse guarida por um breve período, um intervalo de silêncio entre dois mundos, uma pausa necessária antes de partir outra vez. Houve também os que, tocados pela atmosfera única do Lugar, escolheram ficar por dias, por meses, partilhando a sua arte, música, visão. O Gira Ginjal, com suas grandes janelas coladas ao rio e ao horizonte, acolheu cada um com igual generosidade silenciosa.
Desapareceu tudo, como se fosse volátil e muitos ainda recusam passar por lá. Precisam de mais tempo para lidar com a realidade, para deixar ir o que permanece tão agarrado ao coração.
Subsiste a sensação amarga de que foi tudo uma desumanidade que nos soa irreparável e que não passa de um sonho mau do qual vamos acordar, porque é errado apagar assim, tanta vivência, tanta História, tantas histórias.
E é doloroso quando sentimos que o tempo não foi suficiente para celebrar, preservar, ou apenas viver esse lugar na sua plenitude, com tudo o que ele tinha de singular e de potencial.
O desalojamento e a demolição não são apenas actos materiais, mas também simbólicos: rasgam vínculos, desfazem histórias, silenciam vozes que ali se cruzavam no quotidiano.
O Gira Ginjal foi mais do que um espaço físico: foi um lar, uma comunidade, uma memória viva, onde todos os dias se criavam novas possibilidades de recriação e de estar, cerzindo encontros multidiversificados que imprimiam ao Lugar possibilidades únicas, testemunhadas por viajantes de muitos lados do mundo.
Tantas e tantas pessoas que passaram por lá. Os amigos regulares, que vinham trazer e levar novidades, conviver, ouvir música, fazer uma refeição. Os que vinham mais espaçadamente, mas sempre com a expectativa de voltar. Os que entravam por acaso, e encantados permaneciam um dia, uma noite, vários dias, várias noites. Os que procuravam apenas um tecto, um prato de comida, atenção, sentirem que era prezada a sua passagem e estimada a sua existência. Sem julgamentos, nem falsos juízos de valor, num espírito natural e espontâneo de aceitação de diversas realidades e condições humanas, fossem físicas, mentais, sociais ou culturais. Esta era uma marca de distinção do Gira Ginjal que raramente se encontra.
O Gira Ginjal implementou com consistência ideias e práticas artísticas variadas que demostraram que a esperança num mundo novo, constituído na compreensão e no encontro dos talentos reais já manifestados e por emergir de cada um, é um caminho basilar, porque é integrador e inclusivo.
Viver e estar no Ginjal era habitar um território onde o tempo corria ao ritmo do rio e das marés humanas, marcado por encontros diários que se transformavam em rituais de vizinhança, onde todos se conheciam pelo nome e a palavra “Família” transcendia o sangue para designar a rede de afectos e solidariedade que unia moradores, artistas e amigos. Entre a azáfama das casas e a vida cultural cada vez mais definida, floresciam várias iniciativas comunitárias, pautadas pelas trocas mútuas e pelas criações artísticas partilhadas, num ambiente de autenticidade rara, onde a convivência era tão natural como respirar o cheiro salgado do Tejo.
É só depois da poeira baixar que a dor encontra a sua voz. Antes era espanto, era pedra no peito. Agora é choro. Um lamento que vem tarde demais. Percebemos, então, que não vivemos o suficiente ali. Que não parámos para respirar fundo as histórias impressas nos muros, nem para abraçar as ruínas que já anunciavam o seu fim.
Tentamos, em vão, farejar no ar os cheiros de antes, captar no vento os sons perdidos. Mas o tempo não volta. E o que nos foi tirado não poderá ser reconstruído: dar tempo às pessoas foi o que faltou. Era preciso que nos deixassem tempo. Tempo para conversar, para resistir, para mostrar que ali havia tesouros invisíveis aos olhos de quem só vê valor no que pode ser medido em números. Mas o tempo não volta.
Nos últimos anos, antes do desalojamento, eram cerca de cinquenta pessoas, os últimos guardiões involuntários do Ginjal. A sua presença marcou uma fase de transição, um capítulo singular entre um passado de memórias e um futuro que se anuncia radicalmente diferente.
O Ginjal aguarda. Há uma beleza genuína por recuperar. O que se perdeu de possibilidades, talvez se recupere em memória. Desde que haja vontade política, compromisso individual, institucional e acção, permitindo a continuidade da comunidade artística que se criou no Gira Ginjal.
Há que resistir à anestesia. Não aceitar que a memória seja soterrada pela retórica da “segurança “e da “renovação”.
Que nas nossas mentes e no nosso imaginário nasçam trepadeiras, que bem enleadas possam convocar uma espécie de ressurreição que preserve identidade e memória colectiva.
Não é nostalgia. É defesa de um património humano e cultural que nos querem fazer esquecer.
Façamos juntos.
Obrigada Teresa, por esta elegia tão profunda e comovente. As tuas palavras trouxeram-me de volta muitas memórias do tempo em que visitei o Ginjal. Também eu senti que aquelas pessoas e aquele lugar se tornaram família. Ler o teu texto foi como revisitar um pedaço de vida que guardo com imensa saudade. Grata por dares voz ao que tantos de nós sentimos.
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