Para Gregory Bernard, o antigo Transpraia é mais do que um meio de transporte: é património histórico. Foi com este espírito que o empreendedor e produtor cultural francês, de 52 anos, adquiriu o comboio que, durante décadas, transportou os veraneantes da Margem Sul ao longo da linha da Costa da Caparica, até à sua desativação, em plena pandemia de covid-19. “É único em Portugal e no mundo”, afirma Bernard, decidido a reativá-lo, inserido-o num projeto que, para além de melhorar a mobilidade da região, visa dinamizar o território e transformá-lo num polo cultural de referência.

“Acabar com este comboio seria um grande erro”, afirma ao ALMADENSE o empresário, também proprietário do conhecido bar Dr. Bernard, no paredão da Costa da Caparica e de vários outros projetos. Desde que se fixou em Portugal, em 2017, ficou fascinado pelo Transpraia e pelo percurso único que o comboio fazia ao longo das dunas.
“O meu sonho é pô-lo a funcionar outra vez, o mais rápido possível. Se possível, já no próximo ano”, revela. Para Bernard, o Transpraia é muito mais do que um meio de transporte e do que uma proposta turística. Por isso, o seu plano assenta na ligação à comunidade, no respeito pela memória e história do Transpraia e na regeneração urbana da zona. “Os criadores do Transpraia foram visionários”, sublinha.
Recomeçar o que a pandemia suspendeu
A última vez que o comboio da Costa circulou foi no verão de 2019. No ano seguinte, o impacto da pandemia, aliado à crescente perda de receitas e degradação dos equipamentos, ditou o fim da operação do Transpraia, então propriedade de António Pinto da Silva.
O desânimo do antigo proprietário encontrou no entusiasmo de Bernard uma “tábua de salvação”. Em janeiro de 2024, o francês finalizou a compra da operação depois de dois anos de negociações. Foi o primeiro passo no desafio de reativar o serviço. Entre a aquisição do próprio comboio, planos de estudo e trabalhos jurídicos, já investiu perto de 1 milhão de euros no Transpraia. Mas para voltar aos carris, o empresário estima que seja necessário um investimento total de cerca de 5 milhões de euros.

Os planos preveem que o renovado Transpraia comece na Nova Praia e siga até à Fonte da Telha, ao longo de cerca de nove quilómetros. “Idealmente, o trajeto deveria iniciar-se no centro da Costa”, acrescenta, numa referência ao percurso original do comboio, cuja deslocação, realizada em 2007 no âmbito do programa Costa Polis, marcou, segundo muitos, o início do seu declínio. Não sendo possível recuperar esse ponto de partida, defende, como alternativa, a criação de uma ligação rodoviária eficiente entre o centro da Costa e a estação inicial do Transpraia.
O novo projeto é ambicioso: passa por requalificar o hangar que serve de garagem às carruagens, construir novas estações, plataformas e infraestruturar com casas de banho as várias praias, num plano integrado que poderia incluir mesmo os apoios de praia e os nadadores-salvadores. “Algo que ajude as pessoas a ter uma experiência melhor na praia, respeitando o ambiente”, diz.
“Isto é história, é património”, defende Bernard, que aponta ainda no sentido de criar um museu dedicado à memória do Transpraia (ele que tem já feito exposições sobre o tema e que, com um passado ligado ao cinema, está a preparar um documentário sobre o comboio). A preservação histórica é, para si, dos fatores mais importantes. “Não é preciso um investimento gigante. Acredito que devemos manter as carruagens tal como estão, porque se há uma coisa que nunca fica fora de moda é a história. O comboio deve continuar a trabalhar como uma imagem do passado, como a Costa da Caparica foi sendo desenvolvida”, diz. De resto, Bernard e a sua equipa também já estão a desenvolver esforços para que o Transpraia possa ser oficialmente reconhecido como património cultural e histórico.
Modernizar e eletrificar

Não quer isto dizer, contudo, que o Transpraia deve ficar preso ao passado. Pelo contrário, são vários os possíveis caminhos apontados por Bernard no sentido de modernizar a operação do comboio. Entre eles está a necessidade de eletrificar o comboio, no sentido de promover a mobilidade sustentável na zona.
“Podemos eletrificar os comboios e criar carruagens autónomas. Há lugares onde se cruzam, por isso talvez se aumentássemos o número de cruzamentos podíamos ter mais automatização.”
Nesse sentido, conta já estar em marcha um estudo técnico, a cargo da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT), que se associou ao projeto para avaliar a viabilidade da eletrificação do Transpraia. As estimativas preliminares apontam para um custo de cerca de 250 mil euros para eletrificar as quatro composições atualmente existentes, sem necessidade de eletrificar os carris que, ainda assim, exigem intervenções de manutenção anuais. “Poderia operar oito meses por ano; os restantes seriam dedicados à manutenção, que tem de ser constante”, explica Gregory Bernard.
Reduzir a carga automóvel
Além do impacto ambiental positivo que o regresso do Transpraia poderá trazer, sobretudo quando o comboio for eletrificado, Gregory Bernard acredita que o projeto terá um papel decisivo na melhoria da mobilidade na Costa da Caparica. Com base num outro estudo já realizado, estima que o comboio poderia reduzir entre 10 e 15% do tráfego automóvel que chega à zona durante o verão e, sobretudo, contribuir para resolver o problema do estacionamento desregrado, que considera ser “o maior problema da zona”.

Bernard explica que, se o Transpraia estiver a funcionar com boa capacidade durante o verão, poderá retirar dois ou três mil carros das praias a sul da Costa da Caparica, o que representa cerca de 30% do total de veículos e 100% do estacionamento ilegal na zona. “Esse é o principal impacto que o Transpraia poderia ter”, destaca Bernard, que alerta ainda para o facto de “alguns turistas estrangeiros ficarem traumatizados com o trânsito e o estacionamento desordenado quando visitam a Costa, acabando por não voltar.”
Acima de tudo, tem interesse em manter vivas as tradições, como elo de ligação entre as gerações. “Acho que este comboio pode ser um símbolo de mistura entre classes sociais: todas as origens e objetivos, pessoas que querem praticar desporto, as que querem ir a festas, as que querem estar na praia com as famílias. Empreendedores, inovadores… queremos juntá-las, e este comboio vai ser um lugar onde ricos e pobres, velhos e novos, pessoas de todas as origens vão sentar-se e falar”.
Para Bernard, que durante anos viveu na azáfama das grandes cidades, o regresso do Transpraia representa acima de tudo uma alternativa. “É também uma filosofia de desacelerar… não ir de sítio para sítio a alta velocidade, aos gritos, a ter acidentes. Mas sim sentar-se, desfrutar e falar com outras pessoas que se juntam porque gostam da Costa da Caparica”.
Parceria com entidades públicas
Devido ao seu impacto social, ambiental e o papel fundamental como meio de transporte público, Bernard defende que o Transpraia deve ser integrado num projeto de parceria público-privada. “Este projeto não pode depender apenas de um empreendedor, porque não é só uma atração turística: tem um serviço público essencial a cumprir.” Por isso, “precisa do apoio da Câmara ou do próprio Estado Central”, defende.

Recordando o enorme potencial do Transpraia, Bernard acredita que o projeto poderia candidatar-se a fundos da União Europeia destinados à descarbonização. No entanto, lamenta que o maior desafio tem sido a falta de disponibilidade da Câmara de Almada, não tendo recebido até agora qualquer sinal de interesse em colaborar no relançamento do projeto. “Tem sido muito difícil obter abertura por parte da autarquia”, afirma. “Os empreendedores gostam de fazer coisas, os políticos gostam de prometer. Deveriam apoiar quem se propõe a fazer”, aponta o empresário francês.
Questionada pelo ALMADENSE sobre os planos para a reativação do Transpraia, a Câmara de Almada não respondeu às questões colocadas. No entanto, o tema do Transpraia tem sido abordado pela autarquia, nomeadamente quando foi anunciada a expansão do metro Sul do Tejo até à Costa da Caparica e à Trafaria. Em declarações ao ALMADENSE, a presidente da Câmara, Inês de Medeiros, afirmou que a autarquia gostaria de ver o Transpraia relançado, de forma a “promover a complementariedade entre os meios de transporte”.
“No âmbito da adaptação ao plano de ordenamento da orla costeira, esperamos poder ter um projeto coerente entre a relocalização de muitos concessionários e o Transpraia, que poderá também servir esses concessionários”, explicou a autarca, acrescentando que o canal do Transpraia deverá manter-se. Quanto ao regresso ao centro da Costa da Caparica, esclareceu que “só seria possível com uma solução rodoviária”.
No entanto, Medeiros já sublinhou que, por se tratar de uma zona inserida na Reserva Ecológica Nacional, todo o processo deverá ser acompanhado pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo.
Amigos do Transpraia

Enquanto o comboio não volta aos carris, a comunidade que se formou em torno do Transpraia deu lugar à criação da associação Amigos do Transpraia, que pretende tornar-se um ponto de encontro para valorizar a criatividade local, celebrando o talento que pulsa na Costa da Caparica, dos artistas aos pescadores.
No futuro, o objetivo é “criar aqui, na oficina do Transpraia, um centro cultural onde se juntem artistas, empreendedores, estudantes… Um espaço de trabalho que una a população, onde todos possam colaborar, trocar ideias e criar ligações”, explica Gregory Bernard.
Para já, o local tem acolhido exposições, como a que recentemente trouxe obras de artistas como Vhils, Kampus, André Saraiva ou Pitanga. Cerca de 40% do valor angariado destina-se à candidatura do Transpraia a património cultural e ao apoio a artistas locais.
Uma visão para a Costa

Atualmente, Gregory Bernard é proprietário de diversos espaços na Costa da Caparica, que incluem restaurantes, bares, um hostel, academias de surf e zonas de cowork. Antes de se fixar neste território, viveu em cidades como Paris, Londres e Los Angeles, onde desenvolveu vários projetos, sobretudo ligados à produção cinematográfica e à moda. Desde então, tem vindo a concentrar esforços e recursos na Costa da Caparica, com uma visão clara: contribuir para torná-la num destino vibrante, cultural e economicamente ativo durante todo o ano.
“A Costa de Caparica é cada vez menos sazonal, não é só para vir no verão. Pode funcionar o ano inteiro e criar emprego”, defende Bernard, que mantém os seus bares no paredão abertos mesmo no inverno, apesar de admitir que essa operação gera prejuízo. “A Costa precisa de uma visão mais clara, precisa de um plano. Temos tudo o que precisamos para criar algo de bom. Mas é preciso fazer.”
Para Bernard, o caminho passa por valorizar o que já existe. “Temos coisas icónicas na Costa, não só o Transpraia. Também as cabanas de praia, a arte xávega. Temos de respeitar essa história.” Em vez de substituir, prefere preservar e dar nova vida aos elementos identitários da região, apostando na qualidade, na estética e na criatividade. “Precisamos de tornar isto mais bonito. Atrair artistas, arquitetos, trazer novas visões.” Imagina a Caparica como um espaço de experiências integradas, com desporto, gastronomia, arte e cinema, capazes de ligar a população local e atrair visitantes durante todo o ano. É para isso que quer contribuir.
Com Maria João Morais
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