Referência mundial na construção e reparação naval, o estaleiro da Margueira contribuiu para transformar a cidade de Almada. 20 anos depois do encerramento, a Lisnave continua a fazer parte da identidade da cidade.
Joaquim Candeias lembra-se bem do dia em que foi esvaziar o cacifo que ocupava no antigo estaleiro da Lisnave na Margueira, em Almada. Guardou o capacete, o fato-macaco e os restantes objetos pessoais e “foi com um misto de emoção e angústia” que abandonou pela última vez o local onde trabalhou durante mais de 25 anos. Foi uma “vida inteira dedicada à empresa” conta ao ALMADENSE o antigo trabalhador da Lisnave, que fechou portas há exatamente 20 anos: no último dia do ano 2000.
Com capacidade para içar mais de 300 toneladas, o gigantesco pórtico vermelho continua hoje a impor-se no horizonte à chegada a Cacilhas, contribuindo para manter viva a memória daquela que chegou a ser uma das maiores empresas de construção e reparação naval do mundo. Tudo na Lisnave era de grandes dimensões: com uma extensão de 45 hectares, o estaleiro contava com a maior doca seca do mundo e chegou a empregar mais de 10 mil trabalhadores —uma das maiores concentrações operárias do país.
Hoje, duas décadas depois do encerramento, os terrenos abandonados, as estruturas enferrujadas e as docas continuam vazias, à espera de ganhar vida nova.
Uma identidade ligada à construção naval
Entrou na Lisnave em 1973 (seis anos após a inauguração do estaleiro) e ali trabalhou até à sua desativação, a 31 de dezembro de 2000. Hoje Joaquim Candeias recorda como, durante mais de três décadas, a identidade de Almada esteve ligada à indústria naval. Entre os anos 60 e 70, a cidade fervilhava e a população praticamente duplicou, expandindo-se da Cova da Piedade e Cacilhas até ao Laranjeiro. À volta da empresa iam crescendo uma série de empresas ligadas à construção e reparação naval.
Os operários da Margueira contribuíam para a dinâmica da concelho, e mostravam-se decisivos para a economia e comércio local: “na hora da saída do estaleiro, as ruas, praças e lojas de Cacilhas, Cova da Piedade e Almada enchiam-se de homens, muitos deles ainda em fatos-macaco”, recorda a exposição “Pórtico de Identidade”, dedicada à Lisnave, patente no Museu Naval de Almada.
Em 1971 é inaugurada a famosa doca 13, a maior doca seca do mundo (com capacidade de docagem até um milhão de toneladas) e em 1974 abre-se uma nova era na Lisnave. A Revolução de 74-75 é vivida de forma intensa na Margueira, onde se multiplicam as lutas por melhores condições de trabalho, melhores salários, horários e segurança nos tanques, no sistema de lavagem. “Até 1974 as condições de trabalho não eram as melhores”, recorda o antigo trabalhador. Após as primeiras reivindicações, o cenário começaria a mudar e os operários da Lisnave acabariam reconhecidos como um grupo muito reivindicativo.
Em 1977 a Margueira atinge o pico no número de trabalhadores, mas a partir daí começa também o declínio da empresa. Nos anos 80 têm início sucessivas crises na indústria naval e começam a ser frequentes os atrasos no pagamento de salários e os despedimentos. O estaleiro fecha de forma definitiva no ano 2000, sendo os trabalhadores e a maquinaria transferidos para a Mitrena, em Setúbal.
O encerramento acabaria por representar também o fim de um ecossistema económico e social que deixou marca em Almada. “O impacto negativo foi muito grande”, assinala Joaquim Candeias. Para além dos milhares que empregava, a Lisnave era ainda responsável por dar trabalho a “várias outras fábricas mais pequenas que produziam para o estaleiro, fornecendo peças, moldes, etc”, recorda o antigo operário.
Hoje, o estado de degradação na Margueira continua a causar mágoa junto dos almadenses, em especial daqueles que ali trabalharam. Embora já se tenha habituado a ver o gigantesco espaço do antigo estaleiro ao abandono, Candeias continua a sentir tristeza quando avista as enormes docas ribeirinhas ao abandono.
Naquele terreno está previsto nascer um grande projeto urbanístico, combinando habitação, comércio, negócios e lazer. Intitulado Cidade da Água, o plano imobiliário foi aprovado em 2009, prometendo transformar a zona numa nova “Expo”. No entanto, o ambicioso projeto ainda não saiu do papel.
https://almadense.sapo.pt/cidade/no-segundo-torrao-ha-uma-fabrica-especial-que-sonha-reabrir/