No ano em que se assinalam os 50 anos a independência do país africano, o ALMADENSE foi conhecer a “Tia Bé”, cabo-verdiana que há mais de meio século reside em Almada e que é dona de um típico restaurante com o mesmo nome, onde se pode degustar mais de 30 pratos.
À primeira vista, a Rua Manuel José Gomes, na Cova da Piedade, parece tranquila. Nas mesas e cadeiras no passeio não há sinal de movimento. Apenas um letreiro imponente anuncia: “Restaurante Tia Bé”. Dois quadros, um com a ementa e outro com os pratos do dia escritos à punho estão pendurados à parede. Na porta principal, há uma indicação: “Empurre”.
Se no exterior não há movimento a essa hora do almoço, o melhor mesmo é seguir o impulso e entrar. Rapidamente, deparamo-nos com um ambiente verdadeiramente familiar, um ponto de encontro, com cheiro a cachupa acabada de fazer, conversas animadas, o barulho de pratos e talheres, funcionários apressados e uma cerveja que vai e vem.
Quem entra, vai logo ter com a Tia Bé, para dar um beijinho, um abraço ou simplesmente perguntar como vão as coisas. “Toma uma tarraxinha”, convida a anfitriã, oferecendo também um copo do seu famoso ponche de mel, preparado com aguardente, a muitos dos visitantes.
Mas quem vê a Tia Bé assim, de sorriso largo e fácil, conversadora, frontal, jovial, não sabe tudo o que ela já passou para chegar até aqui: é uma verdadeira história de superação, de esperança, de fé, mas também de amor ao próximo, à restauração e ao negócio.
De nome próprio Benilde Monteiro Macedo, nasceu em 1948 na ilha de Santiago, em Cabo Verde, mas só quando foi tirar o bilhete de identidade para poder viajar para Portugal, já com 24 anos, é que se deu conta de que foi registada em 1950: “fiquei com dois anos a menos, mas para mim é igual”.
Durante a infância e adolescência, a então Bé, nominho que ganhou da mãe, era pastora: “cabra, vaca, burro, tudo”, enumera, ao ALMADENSE, alternando entre português e crioulo, recordando que fazia tudo com um irmão, atualmente a residir em França.

Devido às lides domésticas e às vicissitudes da vida, não foi para a escola, tal como muitas crianças da altura em Cabo Verde, embora já na altura mostrasse faro para o negócio. “Eu era muito inteligente”, recorda. Prova disso, é que aprendeu a contar “com as pedras e os tostões”. E começou a assinar o nome já adulta, em Portugal, onde aterrou em 1973, “antes do 25 de abril” de 1974 e dois anos antes da independência do país natal.
“Eu e o meu marido namorávamos em Cabo Verde e ele veio para Portugal. Quando eu vim, estava grávida de três meses do primeiro filho”, prosseguiu, lembrando que, quando chegou uma senhora lhes ofereceu “um barracão” em Almada, cidade onde sempre viveu.
Foi nesse espaço que começaram a fazer almoços e jantares para 30 trabalhadores da Lisnave, os Estaleiros Navais de Lisboa — onde o marido trabalhava e onde também a Tia Bé chegou a trabalhar durante 20 anos —, dando início à veia de cozinheira e mulher de negócios.
Depois da primeira experiência na cozinha, arrendaram uma outra casa em Almada. Já com dois filhos — teve mais três, num total de três meninas e dois rapazes — foram despejados num dia que recorda com um grande temporal, acabando a viver com um familiar do marido. Ainda assim, nada os demoveu: durante algum tempo, viveram um armazém para “desenrascar”, embora tudo fosse praticamente fiado: Nessa altura, “fui bastante abaixo”, recorda.
Mas a convivência não era saudável, acabando a família por voltar a sair, para ir novamente morar numa barraca “de batatas e cebolas”, onde toda a família era picada por mosquitos, exceto o marido. “Deve ser porque o meu sangue é mais doce”, ri-se a Tia Bé, cujo olhar viaja para todos estes e outros momentos turbulentos. Apesar das dificuldades, nunca deitou a tolha ao chão. “Já sofri muito, mas Deus é grande”, afirma.

Na altura, lembra, houve uma grande onda de solidariedade “do povo”, que ajudou a família a comprar madeira para construir uma “bruta casa”, de fazer inveja a muitos apartamentos.
É nesse preciso momento que os olhos da Tia Bé mergulham em lágrimas. “Consigo ainda não chorei, mas já cheguei a chorar” a contar as histórias. Outra aconteceu quando mordeu um dedo de um policial, após confusão gerada com fiscais que tentavam derrubar a casita de madeira. “Às vezes, é bom sermos selvagens, dá-nos mais vida”.
Mas a maior tristeza da sua vida ainda estava por vir: a morte do marido, tão cedo, aos 47 anos, quando ela tinha 42. “Era um grande homem”, murmura, recordando ter ficado extremamente abalada, mas sublinhando que conseguiu seguir em frente, uma vez mais, graças à fé.
“O meu primeiro filho também me ajudou muito [já tinha 18 anos]”, mas já vou em mais de 30 anos a lutar”, confessa, numa entrevista muitas vezes interrompida por amigos e clientes: a Tia Bé não deixa de dar atenção a ninguém.
Outra “desgraça” foi quando abriu um restaurante em Monte da Caparica com um sobrinho do marido. “Eu queria descansar, mas ele era muito nervoso”, conta, recordando que, depois de mais um fecho, ficou 18 dias “paralisada” na cama.
Depois disso, ainda enfrentou o encerramento de outro restaurante, depois de surgirem alertas de que o prédio onde funcionava poderia ruir. Até que, finalmente, chegou ao atual estabelecimento, que já funciona há 14 anos, onde descansa e saboreia as conquistas, preparando e temperando cerca de 30 pratos diferentes “com amor” e “alegria”.
E vai recordando muitos desses momentos nessa que é praticamente a sua casa, pedindo “força” e apontando para os recortes de jornais e revistas e para muitos quadros nas paredes, grande parte deles oferecidos pela Câmara Municipal de Almada.
Entre os reconhecimentos, destaca-se um diploma que certifica a entrega, em 2023, da medalha de prata de mérito do concelho de Almada, “pelos contributos para o engrandecimento do nome do concelho, dos seus valores, das suas gentes e da sua cultura, e pela dedicação evidenciada”.
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