Eduardo M. Raposo, presidente do Centro de Estudos Documentais do Alentejo – CEDA
Almada, com mais de 50 mil indivíduos naturais e descendentes do Alentejo, tem um papel significativo na diáspora, onde existem cerca de 30 grupos corais.
Entramos em 2025 num mundo em chamas. A interminável guerra na Ucrânia, com uma escala armamentista que põe o mundo à beira duma guerra nuclear, enquanto se aponta o dedo inquisitor a líderes mundiais mais sensatos quando defendem negociações para encontrar a paz, seja Lula da Silva ou António Guterres. No Médio Oriente, o genocídio da Nação Palestiniana continua com métodos quase mais implacáveis e cínicos que os utilizados pelos nazis na II Guerra Mundial, agora reforçado militarmente com a queda do regime sírio, onde o governo radical de extrema direita em Israel age com total impunidade, com forte contestação interna mas com apoio efectivo dos EUA, e o Ocidente demoliberal hipocritamente a fazer “vista grossa”, salvo raras e dignas excepções.
Cá pelo país, a visão securitária banalizandou a agenda política com o populismo extremista impondo o discurso do ódio ao emigrante, no exercício de uma política do medo – que pressupõe a possibilidade do aparecimento de um Estado Penal – onde tirar a vida se justifica por pisar um traço contínuo.
Localmente, seguindo a generalidade nacional, o entretenimento ganha peso em desfavor da Cultura.
Mas nem tudo é negativo.
Damos nota de eventos que assinalaram em Almada o 10.º aniversário do Cante Alentejano como Património da Humanidade, onde o Poder Autárquico, na sua estrutura mais próximo do cidadão, o caso das Juntas de Freguesia, é parceiro sólido, fiável e fraterno.
O Cante é o denominador comum mais perene dos(as) alentejanos(as). Ainda que a sua região de origem seja o Baixo Alentejo, desde há muito germinou no Alentejo Central, casos de Évora, Redondo, Reguengos e Monsaraz ou Montemor e mais recentemente Montemor ou até Portalegre, no Alto. Esta expressão de cultura popular é uma forma polifónica simples executado sem instrumentos musicai e o repertório é constituído por melodias e poesia oral (modas). O “ponto” inicia a moda, seguido pelo “alto”, é a voz orientadora, que se ouve acima do grupo em toda a música e duplica a melodia uma terceira ou uma décima acima, muitas vezes adicionando ornamentos. Todo o grupo coral se junta em seguida, cantando os versos restantes em terceiras paralelas. Existe um vasto repertório de poesia tradicional, bem como versos contemporâneos.

Ainda que por norma apresentado um palco há quem considere o Cante mais genuíno o que acontece espontaneamente nas tabernas que ainda subsistem em Serpa, Pias, Cuba ou Vila Alva, entre um copinho e um petisco – que se leva de casa ou o taberneiro oferece em pequenos pires aos clientes. E quando as vozes, em uníssono, se derramam para o chão, sente-se a força mágica da Terra-mãe transtagana, ou no dizer de Pedro Ferro (Artesão do Efémero) “(…) o Alentejo diz. E põe alaúdes na voz para dizer. (…) Fá-lo ao anoitecer, na hora subsolar e sublunar de um tempo que pára para o escutar.”
Em Almada, a celebração do 10.º aniversário do Cante como Património Cultural Imaterial da Humanidade arrancou com uma sessão de abertura realizada no dia 27 de Novembro, exactamente dez anos após a data em que o Cante foi inscrito nas listas da UNESCO. Foi no Auditório António Rodrigues Anastácio, da Junta de Freguesia de Charneca de Caparica e Sobreda (JFCCS), autarquia onde, em parceria com o CEDA – Centro de Estudos Documentais do Alentejo-Memória Colectiva e Cidadania, que teve ainda a colaboração dos Amigos de Almada (AACA) e da Almada Mundo e que contou, entre outras individualidades, com a presença do presidente do Turismo do Alentejo e Ribatejo, José Manuel dos Santos.
Seguiu-se a apresentação da Comissão de Honra, estando presentes cerca de 20 individualidades, das quase 30 que a compunham, representantes de autarquias, associações, grupos corais – Almada e Seixal – da Diáspora e do Alentejo como o já referido presidente do Turismo do Alentejo e Ribatejo e Ribatejo, a vice-presidente da CCDR Alentejo para a Cultura, Ana Paula Amendoeira ou o antigo Governador Civil do Distrito de Setúbal, Macaísta Malheiros.
“Urge fazer o balanço destes 10 anos do Cante PCIH”
Destaque ainda para o colóquio internacional, em formato mesa-redonda intitulado “10 anos depois, que futuro? Contributos da Diáspora para a salvaguarda do Cante”, com Jorge Moniz, Fernando Mão de Ferro, Carlos Balbino, Florêncio Cacete e Ana Paula Amendoeira – que participou on line. A antiga diretora Regional da Cultura, com a sua sapiência e conhecida eloquência, “tocou” os aspectos que são a essência do Alentejo emocionando assistência, como pela descrição intimista que fez da sessão na UNESCO, em Paris, em 2014, onde esteve presente, Carlos Balbino, etnomusicólogo, focou-se no trabalho e percurso do Rancho dos Cantadores de Paris, que criou em 2018 e destacou o trabalho que tem vindo a desenvolver, sobre o Cante e a viola campaniça, no âmbito do doutoramento em curso.
Jorge Moniz, docente, músico e investigador, director do Festival Internacional «Jazz o Parque» no Barreiro, noutra excelente intervenção, este Amigo que, no âmbito do Mestrado estudou o Grupo Ceifeiros de Cuba concluiu sobre a necessidade de integrar o Cante numa política consertada de divulgação do património cultural imaterial; de promover o profissionalismo através da integração do Cante numa estratégia de desenvolvimento turístico e cultural regional; e sobre o alargamento do âmbito ao mapa da chamada “geografia do Cante” e da existência de uma organização reguladora, por exemplo, a “Moda”, com uma atividade estável regular de apoio aos grupos corais.
Verificou-se ainda a importância de intensificar o apoio institucional aos grupos corais por parte dos municípios (nomeadamente ao nível dos transportes ou na ajuda aos custos inerentes à sua atividade) na defesa das identidades e patrimónios imateriais locais.
Fernando Mão de Ferro, editor (das Edições Colibri), fazendo suas as palavras de Ana Paula Amendoeira, direcionou a sua intervenção sobretudo para as questões sociológicas do papel que o Cante tem desempenhado, enquanto denominador comum para os(as) Alentejanos(as), tanto no Alentejo como na diáspora.
A terminar Florêncio Cacete, investigador no CIDEHUS-Universidade de Évora, apresentou e pormenorizou alguns aspectos do trabalho de campo que tem vindo a realizar com uma equipa, no âmbito do Arquivo Digital do Cante, concluindo que:
O Arquivo Digital do Cante, projeto criado e implementado em 2024, assume-se como um verdadeiro repositório da memória e da história do Cante, contada pelos arquivos dos grupos (alguns já extintos) em atividade, estando o projeto a preparar-se para em 2025 alargar o seu âmbito à diáspora de forma mais intensa. Passados dez anos da inscrição do Cante na Lista Representativa do PCI da Humanidade da UNESCO, julga-se pertinente a realização de um Encontro dos dirigentes dos grupos de Cante e dos vários intervenientes e investigadores que se têm debruçado sobre o tema, por forma a fazer um balanço do tempo decorrido bem como perspectivar o futuro.
Quer pela qualidade e rigor as intervenções, quer pelas conclusões aqui expostas, este colóquio internacional foi uma iniciativa excelente, certamente o ponto alto das comemorações do 10º aniversário do Cante PCIH em Almada e um sério contributo para a sua salvaguarda.
A sessão terminou com a atuação de grupos corais do concelho: Grupo Coral e Etnográfico “Amigos do Alentejo” do Feijó e Cantadeiras de Essência Alentejana que deliciou a assistência que lotava o auditório.
No dia 29, em parceria com a Junta da União das Freguesias de Caparica e Trafaria, teve lugar no Grupo Recreativo União Raposense, na Caparica um momento de Cante com actuações da Oficina do Cante do Clube Recreativo União Raposense e do Grupo Coral Alentejano da ASSTA do Seixal.
O Cante em Almada

Almada, com mais de 50 mil indivíduos naturais e descendentes do Alentejo, tem um papel significativo na diáspora, onde existem cerca de 30 grupos corais e mais alentejanos que o escasso meio milhão de habitantes da maior região portuguesa – cerca de 1/3 do território nacional. Existem em Almada formalmente três grupos corais alentejanos: Grupo Coral e Etnográfico Amigos do Alentejo do Feijó; Grupo Coral Recordar a Mocidade do CIRL e Cantadeiras de Essência Alentejana, fundados respectivamente em 1987, 1998 e 2005 – até 2011, este com a designação de Cantadeiras de Alma Alentejana. Os Amigos do Alentejo foram o primeiro coral alentejano a actuar na Casa da Música, no Porto, 2007, a nosso convite.
A partir de janeiro de 2015, o CEDA dinamizou um projecto de salvaguarda do Cante em Almada que movimentou entidades associativas, autárquicas e educativas, onde entre várias valências — intercâmbios, celebrações e investigação académica — se tem vindo a inscrever o ensino do Cante em sala de aula, que actualmente movimenta 13 turmas das E B do Chegadinho e Maria Rosa Colaço. Por outro lado, sempre se entoou o Cante — em tabernas, cafés e casas de pasto — na Cova da Piedade e no Feijó e entre 1970 e 1975 houve três formações de curta duração, mas os referidos são os actuais protagonistas do Cante em Almada.