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“Filhos do Meio”: o papel de Almada no nascimento do hip hop em Portugal, agora também em livro

Berço do hip hop nacional no final dos anos 80 e início dos 90, Almada e a Margem Sul inspiraram a exposição e o documentário “Filhos do Meio”. Agora chega o livro de entrevistas, cujo lançamento decorre este sábado, 8 de fevereiro.

 

1994 foi um ano charneira para o hip hop português. Nesse ano, três projetos fundacionais do movimento foram editados à cabeça, a compilação ”Rapública”, que anunciava o fenómeno musical dos subúrbios de Lisboa através das letras e beats de Boss AC, Black Company e Líderes da Nova Mensagem, entre outros; no mesmo ano, os Da Weasel estrearam-se com o seu primeiro EP, “More Than 30 Motherf***s”, ao mesmo tempo que General D editava “Portukkkal é um Erro”, hino político e polémico de uma juventude em marcha.

À primeira vista díspares, estes três acontecimentos são unidos por um lugar comum — Almada e a Margem Sul que, no final da década de 80, e princípio dos anos 90 serviu como “berço” do hip-hop nacional, e de uma história que nas décadas seguintes veio redefinir o curso da música portuguesa.

Três décadas depois, tempo de assinalar esse momento fundacional. A exposição “Filhos do Meio, Hip Hop à Margem”, que pode ser visitada no Museu de Almada – Casa da Cidade até 29 de março, recupera a história do rap na cidade. Muita dessa história não tinha até aqui sido contada. Foi o mote necessário para o projeto multimédia que, além da exposição, inclui ainda um documentário e um livro de entrevistas. A apresentação da obra decorre este sábado, dia 8 de fevereiro, no Museu de Almada, às 16h.

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Trata-se de uma importante crónica de uma época onde, às portas de Lisboa, grupos de jovens marginalizados foram redesenhando o futuro, primeiro como forma de luta política e depois como afirmação pessoal e de identidade cultural.

O convite surgiu pela parte da própria Casa da Cidade, como conta ao ALMADENSE Ricardo Farinha, jornalista e autor do livro “Hip-Hop Tuga – Quatro Décadas de Rap em Portugal”, editado em 2022, que fez as entrevistas e assina o livro da exposição. “Em 1994 houve um trio de lançamentos que representam as primeiras edições em Portugal; os Da Weasel e o General D são de Almada, o Rapública tinha grupos locais e daí surgiu o convite, sendo um aniversário redondo, um pouco na onda da exposição sobre o rock que também foi feita há uns anos”, explica.

 

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A exposição “Filhos do Meio” está patente no Museu de Almada. Bruno Marreiros / Almadense

A coordenação criativa do projeto ficou a cargo do também jornalista Rui Miguel Abreu, encabeçando uma equipa que contou com um contributo fundamental: o de Daniel Lemos, também conhecido por TNT, figura central da cultura rap almadense e que acabou por servir de elo de ligação a muitas das histórias do passado.

“Faço música há quase 30 anos, especificamente no território há 20 ou 25. Acompanhei toda uma geração que fazia música naquela época. Cresci na rua dos Da Weasel, tive contacto muito próximo com eles desde cedo, acompanhei o início dos Black Company”, relata ao ALMADENSE o também rapper, parte da dupla M.A.C. – Missão A Cumprir, que tem também uma editora com o irmão, o artista visual Francisco Freitas (Chikolaev), que foi o responsável pela parte gráfica da exposição.

 

Reconstituição de uma história

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Os desafios do projeto eram vários, a começar desde logo pela falta de documentação e registos disponíveis. “O TNT e o Chikolaev foram uma grande ajuda, o Daniel faz música desde os anos 90, está muito ligado ao meio e às diferentes gerações. Acaba por haver uma familiaridade, mesmo com aqueles que já não estão ligados ao meio passados estes anos todos, fomos conseguindo chegar às pessoas”, diz Ricardo Farinha.

O rapper almadense confessa, ainda assim, que nem sempre foi fácil reunir o material necessário. “Parte da nossa intenção foi precisamente, como não havia nada, gostávamos de criar alguma coisa, que agora pode ser consultada daqui para a frente”, diz, acrescentando que, além do recurso a arquivos municipais e de jornais, vários foram os contributos que chegaram de lugares inesperados. “Muitas fotos e vídeos chegaram-nos através de namoradas da altura e amigos, nem sequer foi através dos próprios rappers”.

Naquele tempo, para lá de uma cultura musical, o hip-hop era verdadeiramente uma cultura juvenil, uma forma de ser e de se estar no mundo, sobretudo para uma geração pós-colonial, que não se identificava com as expressões culturais do establishment português, nem com as referências trazidas pelos seus antepassados das ex-colónias.

 

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Exposição decorre até 29 de março. Bruno Marreiros / Almadense

“As quatro pedras basilares do hip hop eram o breaking, que apareceu no final dos anos 80, a pintura através do graffiti, o rap com as letras, e o DJing”, recorda TNT, explicando que, naqueles anos iniciais, era comum um membro da cultura estar envolvida em todas estas vertentes. “Devido à globalização isto foi-se perdendo, hoje está tudo muito mais dispersado. Mas na altura foi super importante, até como elemento formador de adolescentes que não tinham formação académica, os pais não lhes conseguiam dar possibilidades de cantar, dançar, pintar”.

Como cultura marginal, poucos registos musicais anteriores a 1994 existem (razão que ajuda a perceber a importância de “Rapública”). No entanto, os ecos que emanavam de Almada nem por isso deixavam de chegar aos vários cantos do país. Na exposição, é possível encontrar registos de Ace, fundador dos portuenses Mind da Gap, em jams no Miratejo a ouvir o que se fazia em Almada; já no livro, Ricardo Farinha aprofunda a história de Freddy Matos, emblemática da forma como a tradição oral fazia as músicas e as rimas viajar de boca em boca. “O Freddy vive hoje em Espanha, e na altura, ligado a uma certa marginalidade, ficou mítico em Portugal. Ainda não havia discos, mas as rimas dele tornaram-se conhecidas pelas pessoas que o viam e que as foram passando. Era assim um bocado uma lenda e nunca tinha dado uma entrevista; contou que uma vez chegou ao Algarve e conheceu pessoas que sabiam as letras dele, mas que não acreditavam que ele era o rapper”.

Esse modo de estar era também uma afirmação política, como se adivinha em muitas das letras das mais emblemáticas canções de Líderes da Nova Mensagem, General D e dos próprios Da Weasel. “Ainda antes de serem bandas, eram grupos de adolescentes que se juntavam como forma de se proteger destes ataques”, diz o rapper, referindo-se aos movimentos de extrema-direita e skinhead que na época proliferavam nos subúrbios da capital.

Neste contexto, um nome particular é apontado pelos curadores como elemento-chave desta resistência: Nelson Neves, pioneiro do rap na Margem Sul e líder do primeiro coletivo de hip hop da região, de onde brotaram depois vários nomes que ficaram para a história do movimento.

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O Nelson é a origem. Já o conhecia, está mencionado no “Hip-Hop Tuga”, mas nunca tinha conseguido falar com ele até agora, e acaba por ser um dos grandes protagonistas de toda esta história”, conta Ricardo Farinha. Hoje residente em Paris e há muito afastado do meio, Nelson foi entrevistado por duas vezes e veio a Portugal para participar no documentário realizado por Luís Almeida. Foi nessas que recordou o seu passado como músico, ativista, e “caçador de nazis”. “Era um movimento muito forte em França, com confrontos nas ruas, e também chegou a Portugal, sobretudo na zona de Almada”, descreve o jornalista.

E se a sua ação durante aqueles anos formativos foi emblemática, o seu esquecimento nas décadas seguintes não o é menos. Tanto assim é que nem mesmo Daniel Freitas sabia da história. “Pensava que a maior referência a nível da Margem Sul era o General D, e acabámos por descobrir ao falar com ele que o grupo do Nelson inspirou-o. Foi um grande impulsionador, quer da parte do rap, quer da parte da resistência anti-skinhead. Não fazia ideia, e até o conheço, mas não sabia que tinha estado na origem”, admite. Tempo, por isso, para redescobrir.

 

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