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“Fazer o ninho”: a realidade dos imigrantes sul-asiáticos em Almada

Quem são os imigrantes que escolhem Almada? Como se consegue a verdadeira integração? Em busca de respostas, o ALMADENSE foi conhecer o casal de nepaleses Pabita e Manohar e as voluntárias da AlmadaMundo Adelaide e Margarida, que lutam todos os dias por um mundo melhor. 

 

Foi numa manhã já quente que o ALMADENSE entrou pela primeira vez no Mr. Masala, restaurante de cozinha nepalesa junto à Academia Almadense, na Rua Capitão Leitão. Entre um suave aroma a especiarias, mesas cuidadosamente postas e pratos coloridos, Manohar Regmi e a esposa Pabita Khanal aproximam-se com a simpatia de sempre, prontos para contar a história deste espaço e, porque uma não existe sem a outra, a história da sua pequena família.

“Os nossos clientes, aqueles que cá vêm várias vezes, são espetaculares connosco, e estamos muito gratos”, refere Pabita entre sorrisos. De portas abertas há um ano, o Mr. Masala faz questão de contratar imigrantes com dificuldade em encontrar emprego, dando-lhes condições justas de trabalho e segurança profissional. O restaurante tem sido um sucesso entre os clientes, com uma avaliação de 5 estrelas (certas) num total de 331 críticas no Google.

Escolhendo Almada, inicialmente, pela proximidade à capital, Pabita e Manohar acabaram por ficar “pelo estilo de vida pacífico e mais descontraído” e “por causa das pessoas muito simpáticas que aqui se encontram”, indicam.

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A língua foi a maior dificuldade sentida pelo casal que, entre a esperança e a incerteza, chegou a Almada há seis anos, pouco antes da pandemia que assolou o mundo em 2020. “Já tínhamos vivido em Inglaterra e a certa altura viemos cá de férias, e passámos por Almada. Dissemos logo que íamos voltar”, recordam Pabita e Manohar. “Quando chegámos, não conseguíamos perceber ninguém. Inscrevemo-nos logo nas aulas recomendadas pela associação AlmadaMundo. Durante sete meses, aprendemos sobre a língua e a cultura, e essa capacitação fez toda a diferença”. Com os filhos de nove e quatro anos, o último nascido já em Portugal, o casal fala inglês em casa e, por vezes, nepalês, para que os rapazes não percam contacto com o país de origem e com os avós, que visitam nas férias escolares.

Pabita e Manohar são exemplo de uma realidade pouco conhecida, ainda que muito comum. “São muitos os migrantes que vêm para Portugal com formação muito completa”, aponta Margarida Fonseca, professora de língua portuguesa na associação AlmadaMundo desde dezembro e diretora reformada da escola Cacilhas-Tejo. “São médicos, contabilistas, muitos deles com mestrado, e chegam cá e não conseguem arranjar trabalho na sua área”, explica. Com formação em negócios, Manohar trabalhava, no Nepal, em marketing para uma grande farmacêutica. Já Pabita, tirou o mestrado em Física, “mas em Portugal estava a ser impossível arranjar emprego na área”. Por isso, acabou por ajudar no negócio de família.

Desde que chegou a Portugal, primeiro em Lisboa e depois em Almada, Manohar trabalhou em cozinhas e centros comerciais, como o Almada Forum. Foi durante a pandemia que começou a dedicar-se mais a sério à culinária, ensinando esta arte em escolas e levando os seus pratos a casa dos almadenses. Há um ano, o casal abriu o restaurante Mr. Masala. “Aqui, cozinhamos com o coração”, assegura Manohar, sorridente. “Queremos mostrar às pessoas as nossas tradições, e a comida é algo que nos aproxima”. Entre os pratos, o chicken tikka masala, o caril de camarão ou as chamuças de frango ou vegetais, transportam os clientes às origens do cozinheiro. “Para a nossa pequena família de quatro pessoas, o restaurante está a dar o suficiente, mas neste momento as coisas estão muito difíceis em Portugal, o que também nos afeta”, indica Pabita.

 

Um Portugal utópico

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Pabita e Manohar criaram emprego para vários outros imigrantes. Bruno Marreiros / Almadense

 

Para Pabita e Manohar, a Cova da Piedade foi, há seis anos, um porto seguro. “A situação política, o nosso futuro e, principalmente, o futuro dos nossos filhos eram para nós enormes preocupações”, indica a nepalesa. “O exagero de burocracia tornava tudo impossível. Outro grande problema, relativo à educação, é que no Nepal muitas pessoas têm formação superior, mas não conseguem empregos”.

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Vivendo em democracia apenas desde 2008, o Nepal tem atravessado um período de grande conturbação política, tendo tido oito governos no poder nos últimos dez anos. “Para além disso, a saúde também deixa muito a desejar”, lamenta o casal, “com cuidados gratuitos, nos hospitais do Estado, de quase impossível acesso e hospitais privados muito caros”. “No entanto, depois da pandemia, Portugal ficou ao mesmo nível”, afirma Pabita.

“Um exemplo é o nosso filho mais novo, agora com quatro anos. Tomou as vacinas até ter um ano e meio mas, depois disso, nunca mais viu o médico de família. Sempre que tentamos marcar consulta no centro de saúde, dizem-nos que o médico está fora ou que não há vagas. É realmente muito difícil”. “Também a educação deixa um pouco a desejar”, confessa o casal. “O mais velho tem sido obrigado a mudar de escola todos os anos, porque deixa de haver espaço. Mas, de acordo com os portugueses, isto é algo que acontece regularmente com todas as crianças”.

Pabita e Manohar não são os únicos que esperavam uma vida melhor no país, como lembra Adelaide Silva, presidente da associação AlmadaMundo. De facto, são muitos os imigrantes do sul da Ásia que arriscam tudo para vir para Portugal e, face à falta de emprego e às condições de vida, muitas vezes precárias, acabam por se sentir desiludidos. “Os imigrantes mais novos pensam que quando chegam aqui têm uma vida luxuosa, que não vão ter dificuldades, mas todos têm imensas dificuldades, pelo menos ao início”, avisa Manohar. “Precisamos de alguém que fale com eles, que lhes diga que vai ser difícil, que têm de ter força e estar preparados mentalmente”. Para Manohar, é indispensável que se crie um espaço de apoio psicológico aos migrantes, muitas vezes em situações-limite, como o abuso de drogas ou tentativas de suicídio.

À falta de apoio psicológico, são muitas vezes Manohar e a esposa Pabita que prestam essa assistência aos migrantes sul-asiáticos em Almada. “Durante a pandemia, eu trabalhei com mulheres e o Manohar trabalhou com homens empreendedores que queriam começar negócios”, indica Pabita. “Agora que estamos mais ocupados, damos prioridade aos recém-chegados que ainda não tiveram aulas de língua e precisam de ajuda com documentação e procura de emprego”. São alguns destes migrantes que acabam por trabalhar no Mr. Masala onde, entre Pabita e Manohar, encontram uma segunda família. Mas nem todos têm essa sorte.

“Por todo o país, os migrantes chegam com uma expectativa alta, muitas vezes vendida por outros migrantes que, já estando em Portugal, cobram para os trazer para cá”, indica a jornalista e repórter nepalesa Muna Sunuwar, voluntária na associação FIBI, na Amadora. “Cada vez mais, há esquemas para tirar dinheiro a quem quer uma vida melhor aqui em Portugal. Outra situação que tem surgido é a de homens que tentam aproveitar-se de mulheres que vêm para cá e que estão numa situação de dependência deles para conseguir emprego ou casa, sendo muitas delas controladas e exploradas sexualmente”.

Para Manohar, a situação também tem piorado no que respeita à forma como os portugueses veem a população migrante. “Há pessoas que acham que viemos para aqui roubar. Nos últimos meses, as coisas têm piorado imenso. Até na estrada, quando estou a conduzir… Pensam que eu não percebo o que dizem, mas percebo, e dá-me tanta tristeza. Nas finanças, nos supermercados, este tipo de episódio tem vindo a acontecer mais e mais”. Pabita destaca ainda a falta de compreensão por parte dos serviços públicos, com multas e falta de apoio para pequenos empreendedores. “Mas, apesar de tudo, as pessoas que vamos encontrando na associação e na comunidade tornam a nossa vida melhor”.

 

“Fazer o pino”: informar e integrar

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Da Ásia meridional chega, todos os dias, “uma avalanche de pessoas em sofrimento”, aponta Adelaide Silva, “que é preciso integrar na comunidade”. Costura, bijuteria e maquilhagem tradicional foram algumas das competências desenvolvidas por mulheres migrantes no Projeto Observatório Liga Almada, da associação AlmadaMundo. “Os maridos trabalham fora o dia todo, e elas, em casa com os filhos, querem desenvolver competências e criar valor”, indica Pabita. Foi nesse sentido que nasceu o Maker Woman Up, programa de capacitação holístico e inovador desenhado para melhorar a empregabilidade e o empoderamento de mulheres migrantes em situação de vulnerabilidade.

É também na AlmadaMundo que muitos migrantes dos mais variados estratos sociais – desde vigilantes a médicos ou investigadores – frequentam as aulas de língua e cultura portuguesa, ainda escassas em Almada.“Torna-se complicado porque, quando arranjam trabalho, os migrantes já não têm tempo e deixam, muitas vezes de vir”, aponta a voluntária Margarida Fonseca. “Há vários exemplos de resiliência”, indica, “como o de Azif que, fazendo longas horas como segurança na outra margem do rio, vem à aula da manhã, depois do trabalho”.

“Aqui na associação temos de fazer o pino para, com os parcos apoios que temos, conseguir acompanhar a cada vez maior procura por parte dos migrantes”, confessa Adelaide. “Numa altura em que cada vez há mais discurso de ódio, mais racismo, consideramos indispensável promover as conversas, os encontros sobre migração e a capacitação destas pessoas”.

 

Almada, “território de muitos”

“Quem escolhe Almada para viver também deve ser escolhido por Almada, e temos de trabalhar nesse sentido, de realmente integrar os migrantes. Muitas vezes não é assim”. Quem o diz é Adelaide Silva, presidente da associação AlmadaMundo onde entre conversas, abraços e muitos projetos, se capacitam migrantes de todos os continentes que escolheram o “território de muitos” como segunda casa.

Para a professora de português reformada que abraçou este projeto, “Almada tem de celebrar esta diversidade que é também a sua identidade”. De facto, o concelho tem “18 mil migrantes, com 132 nacionalidades”, informou recentemente a vice-presidente de Almada, Teodolinda Silveira. Numa cidade com cerca de 180 mil habitantes, a população migrante constitui 10% da população total. Este número representa um aumento de 21% nos últimos três anos (com cerca de 15 mil imigrantes em 2021, segundo dados dos Censos).

A nível nacional, Almada é a sexta cidade que acolhe mais imigrantes, acima do Porto, e primeira fora do distrito de Lisboa. Desta forma, “não se percebe que não haja mais políticas de acolhimento”, confessa Adelaide, destacando a importância de apostar primeiramente no ensino da língua. Neste sentido, existem em Almada algumas opções, entre as quais a turma de língua e cultura portuguesas da AlmadaMundo, as aulas no Centro Qualifica, na Escola Secundária Cacilhas-Tejo ou, mais recentemente, o ensino a estrangeiros no espaço da Junta de Freguesia de Cacilhas.

Até 2023, o concelho de Almada contou com o II Plano Municipal para a Integração dos Migrantes de Almada (PMIMA) para orientar o processo de integração. O instrumento de política local incorporou estratégias das várias entidades que atuam na área das migrações, com o objetivo de promover a integração, incentivar a capacitação e dar visibilidade à diversidade cultural do concelho. Nesse contexto, foram implementadas iniciativas como sessões de trabalho com empregadores, conversas multiculturais, festivais promotores da diversidade ou exposições. Já neste documento publicao em 2020, a aprendizagem da língua é destacada como “uma condição prévia, juntamente com a documentação, para uma adaptação bem-sucedida”. No entanto, esta é no mesmo relatório uma das áreas identificadas como necessitando de investimento local, perante a escassez de respostas existentes.

Terminado o II PMIMA, só agora está a ser elaborado um novo plano para o período 2024-2026, disse ao ALMADENSE fonte da Câmara Municipal de Almada. Até aí, os recursos disponíveis para a comunidade migrante passam pelos Centros Locais de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM), espalhados por todo o concelho, e por associações como a AlmadaMundo ou a AD Sumus. Existe também um gabinete de apoio a migrantes exclusivamente para a União de Freguesias da Caparica e Trafaria, que é uma das que apresenta maior número de estrangeiros residentes.

Apenas em 2023, o número de imigrantes em Portugal aumentou 33%, perfazendo mais de um milhão, como pode ler-se no Plano de Ação para as Migrações nacional, publicado em junho de 2024. Entre os principais desafios à integração de migrantes apontados no Plano de Ação contam-se as dificuldades de acesso ao Serviço Nacional de Saúde ou à educação, a incapacidade operacional da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) ou a proliferação de redes de tráfico e exploração. O fim do regime que permitia a um estrangeiro entrar em Portugal e só depois pedir autorização de residência é uma das alterações anunciadas. De acordo com esta medida, um migrante que pretenda vir para Portugal legalmente não pode fazê-lo sem contrato de trabalho, terminando assim a política de “porta aberta”, como é indicado no próprio documento, e dificultando a entrada no país.

Entretanto, já se aproxima a hora de almoço, e é preciso deixar de lado os problemas e começar a preparar os pratos que Manohar traz no coração. Abrir as janelas. Dar uso às especiarias. Pabita, com o tom triste de um futuro incerto, não deixa de sorrir. “Os imigrantes são como os pássaros. Estão a viajar pelo mundo à procura do melhor sítio para fazer o seu ninho”, diz. “E toda a gente tem direito a fazer o seu ninho”.

 

Fotos: Bruno Marreiros

 

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3 Comentários

    • Ao repórter da notícia agradeço que me informe as moradas do concelho onde estão os CLAIM E O GABINETE DE APOIO A MIGRANTES DA CAPARICA ( conforme notícia abaixo escrita, pelo Almadense)

      os recursos disponíveis para a comunidade migrante passam pelos Centros Locais de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM), espalhados por todo o concelho, e por associações como a AlmadaMundo ou a AD SUMUS. Existe também um gabinete de apoio a migrantes exclusivamente para a União de Freguesias da Caparica e Trafaria, que é uma das que apresenta maior número de estrangeiros residentes.

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