Segunda-feira, Dezembro 11, 2023
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Companhia Portuguesa de Pesca: memórias de um Olho de Boi a fervilhar de vida

No Olho de Boi, em Cacilhas, reparavam-se navios de pesca de arrasto e criavam-se memórias, numa grande empresa que “era uma família”. A exposição “Companhia Portuguesa de Pesca: uma coleção de histórias”, patente no Museu Naval, dá a conhecer o trajeto da empresa através de objetos e histórias pessoais de vários trabalhadores.

 

“Isto era quase uma avenida, da zona onde está agora o Elevador da Boca do Vento para lá”. É assim que José Matos Dias, carpinteiro durante 22 anos na Companhia Portuguesa de Pesca (CPP), recorda os tempos áureos da empresa. Naquela altura, tanto o Cais do Ginjal como o Olho de Boi, em Almada, fervilhavam de vida, vida essa que girava em torno da CPP e dos negócios adjacentes, das conservas à tanoaria. Chegaram a fazer parte da empresa, entre terra e mar, mais de mil trabalhadores.

A Companhia foi fundada a 9 de julho de 1920, por onze armadores ativos. Começa com a aquisição de 14 navios a vapor, acabando por tornar-se a maior empresa portuguesa de pesca de arrasto no mar alto. São três as suas vertentes: a captura – primeiro na costa portuguesa e mais tarde na costa africana – a descarga do peixe capturado e a reparação e atualização dos navios, que se fazia no Olho de Boi. Aí, os diversos componentes das embarcações eram reparados e substituídos. “Hoje, se um componente do navio se estraga, compra-se um novo. Naquela altura, reparávamos tudo, desmontávamos a peça e víamos o que era necessário”, conta José Manuel Ferreira, eletricista bobinador, ao ALMADENSE.

Os pesqueiros de Cabo Branco, na Mauritânia, eram os mais ricos e as capturas até eram escolhidas: preferia-se a garoupa, o pargo, a corvina e a pescada; na costa portuguesa, a pesca era variada – mas nem sempre abundante – incluindo chicharros, gorazes, bicas, cachuchos, meros, ferreiras e douradas.

 

As redes da Companhia

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José Matos Dias e José Manuel Ferreira completam agora 80 anos. Recordam a CPP como “uma grande família”, um lugar onde se “criavam laços” e onde cada secção trabalhava arduamente para construir um todo: os grandes navios de pesca de arrasto. De acordo com José Ferreira, “o navio era a prioridade”. Tendo o navio uma data de saída, “as pessoas tinham de fazer horas extraordinárias, muitas vezes trabalhar noites inteiras”.

Era nessas verdadeiras maratonas de trabalho que se propiciava o convívio entre os trabalhadores: “o pessoal de bordo arranjava o peixe, e havia muita confraternização. Havia uma ligação muito grande, e por isso é que digo que esta empresa tinha um cariz diferente das outras”, recorda o eletricista. Muitos entravam na CPP através de laços familiares, à procura de salários mais elevados e de melhores condições de vida.

Foi também na CPP que muitos operários adquiriram competências literárias, através das aulas de José Ferreira e de outros colegas letrados: numa pequena escola criada no bairro social do Olho de Boi, o eletricista bobinador – que já antes, na tropa, se destacara pelas suas capacidades – ensinava a ler e escrever. “Era aquilo que me dava maior prazer, a vontade deles de aprender”, lembra. Trabalho sem dúvida necessário numa empresa que, após o 25 de Abril, ainda contava com 23% de operários iletrados.

Foi através das lições de José e, mais tarde, da oportunidade de sair duas horas mais cedo do local de trabalho para estudar, que muitos dos trabalhadores passaram de aprendizes a especialistas, vindo cada vez mais jovens a ocupar os postos altos na empresa. Ainda assim, a subida na carreira tinha vários níveis, demorando muito tempo. “Havia alguns homens que já eram avôs e ainda não tinham subido tudo”, refere o antigo trabalhador.

 

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Hoje, os edifícios onde outrora operava a CPP estão em ruínas, tendo sido apenas conservado o edifício da carpintaria – onde José Matos trabalhou –entretanto convertido no Museu Naval de Almada. É aí que pode ser visitada a exposição “Companhia Portuguesa de Pesca: uma coleção de histórias”, em que ao lado de objetos e histórias pessoais de vários trabalhadores é possível conhecer o trajeto da empresa, desde seu começo em 1920 ao seu fim, em 1984, altura em que os trabalhadores acumualvam 13 meses de salários em atraso.

 

Uma coleção de histórias

No museu, Maria José Santos e Vanessa de Almeida – membros da Divisão de Museus da Câmara Municipal de Almada e responsáveis pela conceção e produção de conteúdos – conduzem o ALMADENSE pelos objetos e fotografias expostos. Estes vão desde moldes, de que o museu dispõe num muito completo acervo, até anúncios de peixe congelado: os anúncios da Menina Pescadinha e a Desgarrada do Peixe Congelado, que tinham como finalidade apelar ao consumo desta forma de peixe, inicialmente vista com desconfiança. São objetos que ficaram, até hoje, na memória colectiva dos portugueses.

Entre as histórias que formam a Companhia, pode ler-se a das redeiras, únicas mulheres na empresa e que trabalhavam à empreitada para coser as redes de pesca. Devido ao esforço físico diário, algumas destas mulheres ficavam com as paredes do coração demasiado musculadas, ao ponto de se tornar uma doença: dizia-se, então, que eram mulheres “de coração grande”.

Todos os navios tinham nomes começados pela letra “A”, designando estrelas, aves, peixes ou localidades: desde os iniciais, a vapor – como o Açor ou o Albatroz – até aos barcos para pesca de longo curso, a Diesel, como o Algenib e o Aldebaran.

Uma outra particularidade da empresa prende-se com a celebração do Dia do Trabalhador: mesmo antes da Revolução de Abril, os operários da CPP não trabalhavam a 1 de maio, num acordo tácito com a chefia. Em vez disso, juntavam-se em pequenos grupos que se encontravam para celebrar a ocasião. José Matos Dias refere o posicionamento dos trabalhadores na esquerda política: “muitos eram comunistas, devido àquilo que tinham passado”.

 

Os últimos anos

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Foi algum tempo após o 25 de Abril, segundo indicam José Ferreira e José Dias, que as condições na CPP começaram a piorar. Dada a situação crítica em que a empresa se encontrava devido à depauperação dos pesqueiros tradicionais e ao envelhecimento da frota, o estado intervém e a CPP é nacionalizada.

Com isto, a gestão da empresa muda, não sendo renovados alguns contratos de pesca. “Há um dia em que vamos a uma reunião em Lisboa e ouvimos mesmo um responsável dizer: «Aquela empresa é para fechar! E dêem lá as voltas que quiserem para fechar»”, recorda José Dias que, depois de 13 meses sem receber, decide candidatar-se a uma vaga na Força Aérea, onde vem a trabalhar por vários anos.

Em 1984, a CPP fecha, ainda com 12 navios em boas condições. Os trabalhadores não emudecem: durante sete anos, denunciam a falta de pagamento dos complementos de reforma, subsídios de doença e indemnizações, saldados em 1991. Vanessa de Almeida refere a memória fragmentada desta empresa: “muitos trabalhadores da CPP transitaram para a Lisnave. A maior parte das empresas que havia no Cais do Ginjal fecha nos anos 80”, indica.

Hoje, quase 40 anos após a extinção da Companhia, ficam as memórias, celebradas na festa de Natal que costumam organizar na Incrível Almadense ou os jantares anuais e os almoços de convívio organizados entre antigos colegas, que fazem parte do grupo Amigos do Museu Naval de Almada. Os edifícios da CPP, atualmente propriedade do IHRU, continuam abandonados, num Olho de Boi (quase) fantasma.

 

Fotos: Bruno Marreiros

 

20 anos após o encerramento, a memória da Lisnave continua a marcar Almada

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